Gutyerrez Oliveira Monteiro
Rosa Neves Monteiro
Gutyerrez Filho
O Menino Virtual
E
OUTROS CONTOS
Editora ÁGAPE
2ª Edição,
Manaus, 2020
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Monteiro,
Gutyerrez Oliveira, 1955- O Menino Virtual e Outros Contos / Gutyerrez Oliveira
Monteiro, Rosa Neves Monteiro e Gutyerrez Filho- Manaus - AM Editora
Ágape, 2020.vi, 78 p.; 21 cm.
ISBN: 97-885-7828-433-6
1. Literatura. 2. contos brasileiros . Título.
CDD B869.31
CDU
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Permitida reprodução desde que mencionada a fonte
Agradecimentos
Gutyerrez
Oliveira: Ao
meu Senhor Deus honra e Glória por ter dado-me esse sonho real, esse
livro-filho, genético e primogênito dos muitos que virão. A minha esposa Rosa
Neves, filhos e netos que pela união, me transformaram em esposo e pai de amor.
Aos meus irmãos Pintos & Oliveira Monteiro. Aos meus amigos professores,
leitores e alunos de todas as escolas das cidades e do interior do Brasil. A
memória de minha avó Maria Cândida Ramos de Oliveira (professora das
primeiras letras) A minha mãe Layde Ramos de Oliveira. Ao meu pai Silvino
Diniz Pinto, com saudades e lembranças.
Rosa
Neves : Meus
agradecimentos são para o meu Deus, meu criador e mentor, pois tudo o que
tenho, o que sou e o que sei foi Ele que me concedeu.
Gutyerrez Filho : A toda a minha família, base do meu alicerce, e
fonte inicial de minhas inspirações. A Sylvia Aranha e seu olhar carinhoso
sobre essa obra e a todos da Associação Dom Jorge Maskell.
A todos os meus amigos
que ainda estão por aí (FBF, DELTA-x-a-quinta E.G.S, M.A.G, Perrys, Lupércio,
pepetos e pepetas).
E a todos aqueles que
não mencionei aqui, mas que acreditaram nesse sonho. E também a todos aqueles que
não acreditaram, pois me desafiaram a provar que estavam errados. Ninguém
enxerga borboletas em lagartas.
Apresentação
É difícil escrever a respeito de um livro composto por três
autores: pai, mãe e filho. Embora com estilos e inspiração diferentes, os três
têm algo em comum: uma grande sensibilidade.
Gutyerrez Pai, fala da floresta, do
rio, da sua infância feliz, povoada das fantasias das histórias de Aladim e Ali
Babá. E, ao lado das maravilhas da
natureza nos oferece contos sobre o mundo virtual, que ao mesmo tempo limita ou
amplia a nossa visão da realidade, conforme a maneira como nos utilizamos das
novas técnicas.
Em Gutyerrez Filho,
sentimos uma grande preocupação com o social, com os problemas da juventude e
no seu conto “Chico e o Mundo”, uma
ânsia de liberdade, uma busca da borboleta azul, “porque tudo o que ele queria era ver o mundo”.
Rosa Neves nos leva à “Fazenda Segredo” onde passou a infância
e onde se apaixonou por um porquinho, e como criança que era, não podia
compreender como o animalzinho preferia a lama a uma almofada cheirosa que lhe
era oferecida.
Os três autores são estreantes, promessa de outras obras, que com
certeza virão enriquecer nossa literatura.
Sylvia Aranha
Em 29 de novembro de
2011
Itacoatiara -AM
(Primeira edição)
Sumário
O Menino
Virtual
Gutyerrez
Oliveira
Sonhos de
Lata
Gutyerrez
Oliveira
Outro
Conto do rio
Gutyerrez
Oliveira
Ônibus de
lata
Gutyerrez
Oliveira
Eu era
feliz e não sabia
Gutyerrez
Oliveira
Uma
historia da floresta
Gutyerrez
Oliveira
Café
Tremido
Gutyerrez
Oliveira
Noturno
no Seringal
Gutyerrez
Oliveira
Mais um
dia
Gutyerrez
Filho
A Loja de
Amigos
Gutyerrez
Filho
Chico e o
Mundo
Gutyerrez
Filho
Vozes
Silenciadas
Gutyerrez
Filho
Acidente
na Avenida
Gutyerrez
Filho
Porcos na
Alma
Rosa
Neves
Um dia na
enchente
Rosa
Neves
O MENINO VIRTUAL
Gutyerrez Oliveira
Ele acorda tarde pela
manha. Pois fica acordado a noite toda. Sempre navegando... Navegando...
Navegando...
Ele não dorme tão bem a
noite, porque sente muito frio e insônia. Logo depois de acordar, liga seu
computador e a moça, a empregada da casa, leva o seu x-burguer de café da
manhã. Sua comida predileta. Ele suja o teclado com maionese, pinga
refrigerante no mouse. Mas nem percebe. Não tem tempo para esses detalhes
corriqueiros.
Enter... Enter... Enter...
Um clique e um novo mundo aparece. A vida é mais fácil assim.
Entra na net, começa
a navegar distante e se esquece de voltar para almoçar... Seu corpo já nem
sente fome, e emagrece sem que ele perceba, e adoece sem que ele perceba. Sua
epiderme é clara demais, nem parece de verdade. Ele nunca sai ao sol. Parece um
vampiro. E o seu cabelo é tão desalinhado, tão desajeitado, tão mal cuidado.
Ele nunca penteia! No pequeno mundo do seu quarto ele voa pelo infinito do
universo e dá uma volta completa na galáxia. Para ele, suas idéias
modernas são inalcançáveis, intransponíveis, já nos ultrapassou anos-luz. Ele
tem amigos na Ásia, no Japão, na Europa, Londres e viaja atravessando como um
raio para Nova York, visita a Estátua da Liberdade, passeia pelo Havaí num
instante e surfa nas ondas da pororoca, na foz da ilha de Marajó. No
momento seguinte vai a Paris, visita a torre Eiffel, vai até o Oceano Pacífico
nas ilhas de Apia e Pago-Pago...
Ele está cheio de amigos
por todo o mundo. Mas está sempre tão sozinho. Ele tem uma namorada linda que
mora do outro lado do mundo, mas nunca a conheceu pessoalmente. Só pela tela do
monitor. É uma namorada virtual que se apaixonou por uma foto que nem é dele.
Ele nunca sentiu o sabor do beijo de uma garota de verdade, a
delícia de um aperto de mão. Mente para si mesmo que sim. Faz tempo que não
sente o calor de um abraço, porque não tem mais tempo de andar pelas ruas e
praças, sentir a brisa no rosto e ver o pôr do sol.
Ele nem lembra mais do
próprio nome de tantos fakes que já criou na net. Não nota as pessoas a sua
volta. Afinal o que haveria de interessante nelas?
A sua mesada
permanece intocada na cômoda sobre o quarto. Ele nem ouviu quando seu pai lhe
disse sobre isso há três dias.
E quando algo dá errado.
Quando o software, o hardware do computador entra em pane... Sua vida também
entra! Ele fica desanimado, já não sorri tanto. Sente-se entediado. Quer
deletar aquela vida, aquela casa, quer ir para longe, para qualquer outro
lugar, onde haja um computador funcionando com internet, que o leve de volta
pra sua vida virtual.
“A vida
virtual é mais fácil” diz ele “dá pra bloquear
aquilo que te incomoda. Se você comete um erro, aperte ctrl + z e tudo estará
bem. Em vez de escrever você pode copiar e colar, as idéias que quiser e de
onde quiser. Na internet você faz o que quer, você é quem quiser e quantas
vezes quiser. Se você tem algum defeito, ajeite no fotoshop. Dois clicks e você
está dentro, um Click e você está fora. O que há de mais real no universo?”
No seu mundo não existe
tédio somente downloads, downloads e mais downloads... E aí num instante as
músicas mais ouvidas, surgem, imagens, wallpapers, novos cenários, novas
paisagens, novos filmes do momento.
Click. A sua vida é um novo
papel de parede na área de trabalho.
Click. Ele vive mil
aventuras em um mundo virtual fantástico de um game.
Sempre seu pai lhe chama
atenção. Um dia lhe disse:
-Acorda menino! Sai desse
computador. Vai dar uma volta. Conhecer amigos de verdade! Sai desse mundo
virtual. Você não quer aprender nada sobre a vida real?
Ele sorri desinteressado e
pergunta:
-Onde é o site que eu baixo
algo sobre isso?
SONHOS DE LATA
Gutyerrez Oliveira
A mulher entrou na sala e
viu o seu companheiro de malas prontas, varias bolsas de viagem arrumadas,
pronto para partir. Ela estranhou aquilo.
-Vai viajar?
-Não- disse ele frio como
sempre.
-O que são essas malas
então?
-Eu estou indo embora!
-Como assim indo embora?
Então ele começou:
-O que eu vou lhe dizer
agora vai soar como uma desculpa esfarrapada, mas não é nada disso. Eu tenho
aqui um cheque de um milhão de dólares oferecido pela Empresa X. Por danos
morais ou por qualquer outro tipo de danos devido à experiência que você foi
submetida
-Como assim, do que está
falando?
-Assine aqui - pediu o
marido lhe dando um papel com um monte de letrinhas, um cheque e uma caneta.
A mulher segurou a caneta e
tentou ler as letras miúdas e ele continuou:
- Estou indo embora porque
não sou como você. Entenda, digo isso em todos os sentidos. E no sentido
literal da palavra. Eu não posso sentir como você sente, não posso sorrir como
você, ficar alegre, ficar com raiva ou ter medo. Quando eu ajo de tal forma, na
verdade tudo não passa de simulações feitas a partir da minha programação.
A mulher já não lia mais
nada e prestava atenção estupefata nas palavras do marido.
-Eu não estou entendendo
Marcos? Há outra mulher, entre a gente, é isso?
-Não, não é isso
-É um homem então?
-Não. Você não está
entendendo!
-Não, não estou! Por favor,
me explique! Isso é alguma brincadeira? Porque se for, eu já cai na pegadinha
ouviu? Por quê? Por que você está me deixando Marcos?
-Eu não sou humano como
você Marta!...
-O quê?
-Sim Marta! Eu sei que é
difícil mas, eu sou um protótipo especial de engenharia robótica da
Empresa X, acho que você já deve ter visto nos comerciais. A
empresa X trabalha com tecnologia de eletrodomésticos.
-Eu sou um Autômato. Fui
criado secretamente, sou uma máquina que simula emoções. Pertenço a uma série
de quinhentos protótipos para teste enviados para interagir com a sociedade.
Aparentemente temos todas as funções humanas, mas se você prestasse bem atenção
perceberia que eu nunca usava o banheiro, ou me alimentava.
-Você esta dizendo que é um
robô? Isso é ridículo, Marcos! Não me faça de palhaça, se está arrependido de
ter vindo morar comigo não precisa usar essa desculpa idiota para ir embora! Eu
nunca te pressionei a nada. Aquela conversa de ontem a noite sobre casamento
foi só uma conversa como qualquer outra Marcos! Eu não estou te pressionando a
nada! Você está se sentindo pressionado é isso? Não precisamos casar, droga! Eu
só toquei no assunto e...
Marcos então começou a
emitir vários barulhos mecânicos, alarmes sonoros e intermitentes, girou o
pescoço em trezentos e sessenta graus como a mulher possessa do filme O
exorcista.
-Mas o que...
-É o que estou tentando lhe
explicar Marta. Você ajudou involuntariamente a Empresa X no teste dos
protótipos, durante esses três meses que estive com você. Por isso está sendo
indenizada. Quando eu ia para o trabalho, na verdade eu ia até a unidade laboratorial
da empresa localizada nessa área aonde era feito manutenções em mim. Assine esse
papel, se você sentiu-se prejudicada sentimentalmente ou moralmente,
você será indenizada pela Empresa X, Marta.
Marta chorava, chorava e
não queria ser consolada. Nem mais saber de nada.
- Eu assino! - soluçava
ela!- Apenas vá embora daqui sua máquina sem sentimentos! A Empresa X usa as
pessoas! Usa o sentimento das pessoas para crescer! Que tipo de empresa é essa?
- Devido à competição em
alta escala que está havendo entre a nossa empresa e a Empresa Y, que também
teve a mesma idéia de fazer protótipos cibernéticos! Por isso tivemos que
tomar tal atitude! A Empresa Y também fabricou protótipos, Marta. E eles podem
estar em qualquer lugar nesse momento fingindo serem pessoas. Não podemos
deixar que a empresa Y ganhe os clientes da nossa empresa. Temos que
aperfeiçoar os protótipos de relações pessoais o quanto antes. Para isso que
fui programado.
- Então todos aqueles
nossos sonhos de viajar pra Nova York, Londres, aquilo foi tudo mentira? –
dizia ela ainda olhando para o robô esperando que tudo aquilo não passasse de
uma pegadinha do Faustão.
- Sinto muito senhorita,
mas “latas” não têm sonhos!- disse o robô.
E antes de partir
certificou-se de que Marta assinaria o papel e aceitaria o cheque. Partiu
para sempre dali, com todas as malas de roupa e com todo o amor e tempo que
Marta havia investido.
Depois disso Marta
permaneceu sozinha chorando na sala por algum tempo. Alguns minutos depois ela
foi até a porta certificar-se que o marido-robô havia mesmo ido embora,
então quando percebeu que estava sozinha limpou as falsas lágrimas e sorriu.
-Há! Há! Há! Que idiota! -
gargalhou ela olhando o cheque e o papel assinado de indenização.
-“Latas não tem sonhos!”.
Você é que pensa! Eu vou para Nova York com esse um milhão de dólares -
disse ela. – Mas antes preciso ajeitar essa engrenagem aqui!
Dizendo isso ela foi para
um quartinho secreto escondido, incrustado na parede, onde havia uma mala
com ferramentas especiais de alta tecnologia. Retirou de lá uma
chave especifica e começou a desapertar um parafuso do seu braço. Em
seguida girou o pescoço em trezentos e sessenta graus certificando que
suas engrenagens estavam boas ou precisavam de óleos. Depois retirou seu
braço de fibra eletro-mecânico pingou óleo e uma graxa
especial nas engrenagens aonde havia o emblema de marca de
fabricação da Empresa Y.
OUTRO CONTO DO RIO
Gutyerrez Oliveira
O barulho da máquina no
barco que subia o rio invadia o silêncio da floresta naquela manhã. Rasgava
passagens entre os ramos verdes, caniços e cipoais, e não mais voltava. Se
perdia pelos confins da mata. Uma parte do ruído penetrava entre as árvores do igapó,
despertando a Matinta- Pereira, que dormia dentro de um tronco oco e que tinha
assobiado a noite inteira assustando os ribeirinhos que moravam naquelas
bandas.
O curupira montado no porco
queixada, liderava um bando de caititus que passavam pisoteando e
quebrando a mata virgem, destruindo e levando tudo que encontravam pela
frente. No alto das árvores, a jaguatirica e os macacos que ela perseguia
pararam distraídos e curiosos por um instante, ouvindo o som estrondoso da
manada lá embaixo, que se misturava ao som que vinha do barco. Os animais
tentavam manter entre eles, um distanciamento prudente, preparando saltos entre
os galhos na precisão de uma fuga.
Outra parte do som ia de
encontro às árvores e barrancas de terras caídas na margem do rio e retornavam
para o barco junto com a canção das cigarras-ninfas que naquela hora do dia
teciam o verão.
Naquele momento, me
sentindo o senhor daquelas paragens, eu, curumim estava deitado de bruços em
cima do toldo da embarcação em movimento, olhando o rio com um certo olhar de
jovem filosofante. Me deleitava com aquele quadro vivo e conseguia ver
a minha volta detalhes que pareciam tão insignificantes para o
passante, mas tão nítidos para mim. Um pássaro voando baixo sobre o rio e
de vez enquanto um mergulho no profundo das águas, logo a seguir, lá estava ele
com um peixe no bico. Outros pássaros nas árvores, pairando, beijando uma flor;
o beija-flor. Uma borboleta colorida voando em zigue-e-zague. Uma flor que não
estava ali na viagem passada. Todos aqueles detalhes não me escapavam a visão.
Eu imaginava uma semente germinando, brotando, rasgando o chão lentamente
de dentro para fora, buscando a luz para ver aquele dia, fazer parte da vida,
participar, receber a brisa suave em suas primeiras folhinhas. Aquela bromélia
que na viagem passada começava a brotar, agora já estava adulta, completa,
perfeita... Linda.
Meus olhos vasculhavam o
horizonte entre o céu e o rio; que se encontravam também por detrás das matas e
cabeceiras.
Ao longe, um ponto negro no
rio, que crescia ao se aproximar, me chamou atenção. Ficava acompanhando até
chegar bem perto e verificar com surpresa que era um imenso loyde brasileiro de
turistas, ou um cargueiro que vinha de muito além do mar... Aquilo me deixava
assustado, eu perguntava como aquele pedaço de cidade flutuante, edifício com
vários andares conseguiu chegar até ali, e passar por nós! Em que outro local,
ou país aquele “pedaço de cidade” (eu me referia ao navio com vários andares
como sendo um edifício ou um pedaço de cidade) vai se encaixar como um
quebra-cabeça?
Ainda em cima do toldo
sentindo aquela brisa fria, o pensamento me transportava para o momento
de alguns dias atrás em que eu caminhava na praça do largo de São Sebastião em
frente ao Teatro Amazonas, saltando e caminhando sobre os ladrilhos brancos e
pretos em forma de ondas que simbolizam o encontro das águas ou as grandes
ondas dos mares do meus sonhos os quais me levavam direto ao monumento central
da praça, “Abertura dos Portos”. Onde eu menino, em um piscar de olhos saltava
nos convés daqueles barcos de bronze (Europa, Ásia, África e América) e
viajava imediatamente para Argentina, Panamá, Espanha, Portugal,
Inglaterra, e de barco em barco para cada país do mundo conforme o meu
pensamento.
Sentado no convés daqueles
barcos eu me imaginava um nauta sonhador que conhecia o mundo inteiro, um
capitão! Um lobo do mar.
Fazia a primeira viagem
para as Américas. Logo a seguir passava de um navio para outro. Imaginava que o
outro navio era um navio pirata ou um corsário inglês, hasteava a bandeira
negra com os ossos e a cabeça da caveira. Agora eu era um corsário descobridor
dos sete mares a serviço do meu rei. Viajava uma nova aventura a procura de um
mapa do tesouro perdido pelo terrível pirata barba negra em uma ilha distante.
E num instante a visão da
água sendo separada pela proa do barco que formava um bigode constante na proa
afastando as águas e removendo obstáculos da passagem me faziam voltar a
realidade daquele rio o qual eu estava navegando agora.
O barco correndo ao
lado das margens que iam ficando para trás, recebiam o banzeiro que lavava as
pedras e argilas dali. De repente uma casa, um cercado na curva do
rio, curumins e cunhãtas correndo sobre o barranco de terras caídas para ver o
barco subindo. Lá do alto faziam acenos dando adeus. Talvez em cada
coraçãozinho ali, batia uma vontade de ir também, naquela viagem... Mas iam
ficando para trás... ficavam para trás...
Logo a seguir, a cerca do
curral, alguns bois pastando nos olhavam sem ligar, o mais importante para eles
era o remoer e fazer o movimento do queixo retirando o supra sumo do
capim. A seguir, a visão do laranjal imenso que se perdia dos olhos na
imensidão dos campos. O homem no roçado próximo a margem parava de roçar,
retirava o chapéu, limpava o suor da testa com a manga comprida da camisa, parando
alguns minutos, mais para descansar e renovar as forças enquanto olhava, do
que para acompanhar o barco que subia o rio cortando o silencio da
floresta.
Ônibus de lata
Gutyerrez Oliveira
Na verdade dos nossos
sonhos estão tantas historias da nossa vida. Pensamentos, lembranças e
saudades de vivos momentos vividos na infância, que nos fazem outra
vez pequeninos no tamanho, mas gigantes no viver outra vez! São tantas coisas
belas que tinham sido esquecidas, arquivadas, talvez no subconsciente da alma,
umas muito reais e outras sonhadas que jamais esqueceremos, como;
correr pela praça, brincar de pega-pega, pular amarelinha, apertar campainhas
nos portões e se esconder, atirar bolas de papel nos colegas na sala de
aula, sentir o cheiro das flores e admirar a confecção de todas as
coisas feitas por nosso Deus criador.
Vou contar lhes uma
dessas histórias, foi assim:
Quando era menino, ganhei
de presente um pequeno ônibus de lata. Eu o amei desde o primeiro dia, desde o
momento que o vi.
Tinha sete anos de idade, o
tempo passou, mas parece que foi ontem. Guardo ainda na lembrança todos
os momentos e detalhes daquele encontro. Lembro até dos passos apressados
que eu era forçado a dar (ia chorando) pois estava sendo levado pela mão
de minha mãe que caminhava apressada para pegar a roupa lavada e passada
na casa de D. Chiquinha , uma senhora que vivia do oficio de
lavar roupas.
Quando cheguei na
porta da sala, ali estava ele; em cima da mesa de jantar, limpei as
lágrimas dos olhos e me apaixonei!
Comecei a inspecioná-lo.
Como era diferente! Era
feito da metade de uma lata de solvente para tintas (tiner) cortada de
comprido, nas laterais foram feitas janelas sem vidraças e duas portas;
dianteira e traseira. Fiquei olhando para dentro dele pelas janelinhas, notei
cadeirinhas bem arrumadas forradas de napas posicionadas umas próximas a janela
outras para o corredor do centro do ônibus. A cadeirinha do motorista, alavanca
de marchas (câmbio) retrovisores internos e externos, degraus na porta
para a subida, isso tudo pronto a servir minúsculos passageiros
(liliputianos) da minha imaginação. O chão do ônibus pintado de uma
cor alumínio prata, imitando o metal. A cabine fora fixada por sobre uma
carroceria com quatro rodas que prendiam em dois eixos, rodas essas
feitas de madeiras com serra “tico-tico” contornadas e lixadas com
acabamento perfeito para as pistas de rolamentos das ruas do meu
pensamento. Lembro que era pintado de vermelho fosco com listas pretas nos
pára-choques, tinha uma plaquinha com número e tudo para ser identificado com
licença pelo departamento de transito e uma inscrição nas laterais que dizia:
Viação “Nova Aliança”
Paulo, um menino de
aproximadamente 14 anos filho único de D. Chiquinha, rapaz de bons modos,
gestos calmos, um pouco retraído, encontrou-me analisando sua “obra prima”,
contou-me que ele fizera aquele carro não para brincar, mas para vender e
ajudar sua mãe nas compras de casa. Eu quis ficar com aquele ônibus, pedi a
minha mãe que comprasse...
Depois de algumas
recomendações quanto ao meu boletim escolar, terminou comprando. Paulo
ajudou-me a amarrar um fio de barbante no pára-choque frontal e fui
puxando o meu presente carregado de passageiros para a ilusão do meu
mundo de criança feliz .
O tempo passou rápido e o
que estava previsto para acontecer aconteceu ... Eu cresci, me enamorei de muitas outras coisas pela vida, só não
consigo lembrar para onde e como sumiu meu “ônibus de
lata.”
Um dia desse entrei numa loja, fui confrontado
pelo espanto com essa lembrança outra vez; porque encontrei na prateleira
da vitrine um outro ônibus com a mesma cor, sendo de plástico e pneus de
imitação de borracha ..
Eu o comprei...
Hoje quando escrevo, sinto
saudades viajando no tempo das recordações e lembranças maravilhosas da minha
infância, quando reconstituo as brincadeiras com os amigos no quintal da casa
sombreada de árvores onde nasci, fazíamos ruas, pontes, estacionamentos e
garagens de areia e pedrinhas de seixos onde passávamos com o
ônibus e outros carros fabricados com latas, latas
vazias com formatos de tratores e amassadeiras ...
Hoje quando escrevo, vejo
outra vez o tempo que passou e o meu ônibus de lata... O menino que
havia em mim, ainda existe.
Eu era feliz e não sabia!
Gutyerrez Oliveira
As recordações continuam
batendo bem mais forte. Pulsando no coração, tocando a alma saindo na ponta do
lápis para registrar esta saudade. Saudade do eu menino na Manaus da minha
infância, quando eu ia e vinha pela rua monsenhor Coutinho, rua que passa por
detrás da igreja do largo de São Sebastião, onde de 15 em 15 minutos, ainda
hoje o relógio da torre badala a hora certa.
Naquele tempo eu morava
nessa rua. Tinha seis anos de idade, estudante inicial empolgado com a mágica
das primeiras letras, que ao ajuntá-las, formavam palavras que nos
permitiam voar e penetrar no meio das histórias de livros que
continham sonhos que nos transportavam para qualquer lugar.
Um dia voei em um tapete
voador com Aladim, sua lâmpada e sua namorada, por cima de Bagdá, e vi
assustado as torres da cidade em formato de abóboras gigantes, quase colidimos
com algumas delas. Outra vez fiquei tremendo de medo quando ao caminhar com Ali-
Babá, ouvimos um tropel de cavalos e tivemos que nos esconder por detrás de uma
moita enquanto o chefe dos quarenta ladrões gritava “Abre-te Sésamo” e aquela imensa porta na rocha foi se
abrindo sem fazer nenhum barulho , então todos os ladrões entraram, o chefão
falou agora “Fecha te Sésamo”
e a porta no meio da rocha voltou ao normal como se nada tivesse
acontecido, gravamos as palavras mágicas pronunciadas pelo seu maioral,
então quando os ladrões foram embora, eu e Ali-Babá nos aproximamos da
rocha. Ali pronunciou as palavras mágicas e a porta se abriu, vimos então no
esconderijo dos ladrões a maior quantidade de tesouro que os meus olhos
já puderam ver.
Vi também outra cena
horrível, a vovó da chapeuzinho vermelho ser retirada viva da barriga do lobo
mal como se fosse um parto cesariano sem anestesia, operado por um caçador
brutamontes.
Outro dia, ao caminhar por
um deserto e chegar a uma cidadezinha, vi o Barão de Munchausen tentando
desengatar o seu cavalo que ficou preso na torre campanário
de uma igreja.
“E assim eu
vivia sonhando com as histórias das mil e uma noite”.
Estudei no Jardim da infância do grupo escolar Barão do Rio Branco, localizado
na Avenida Joaquin Nabuco quase em frente ao Hospital Beneficente Portuguesa,
com seus jardins bem cuidados e apinhado de plantas e mangueiras,
que onde, ao sair da escola mais cedo, eu e meus colegas de aula colocávamos
visgos com leite de jaca para pegar curicas e periquitos barulhentos, ou
apanhávamos mangas de bole-bole.
O jardim da infância do meu grupo escolar, era ladeado de muitas flores,
plantas ornamentais, Avencas, Lírios, Rosas, Dálias, as quais a nossa
professora mais bonita falava que não arrancássemos as folhas e flores
porque senão as arvorezinhas choravam e ficavam tristes por ter os seus
pedaços arrancados. Imediatamente eu construía na minha fantasiosa mente de
menino maluquinho, aquelas plantas de narizes e orelhas arrancadas, com
lagrimas nos olhos correndo atrás de nos, querendo nos pegar para se
“vingar”. Durava pouco esse pensamento, porque logo a seguir me distraia com a
forma divertida das letrinhas desenhadas pelas nossas professoras. As letrinhas
tinham mãos e pés, algumas usavam vestidos com flores, outras vestiam roupas e
sapatos de meninos e ficavam coladas nas paredes da sala de aula.
Tinha uma menininha muito linda, da minha idade, que sentava na mesma mesa que
eu, fazíamos atividades cobrindo as letras e formando nomes de
gente e coisas, estávamos sempre juntos, fabricávamos bonecos
e carrinhos com cera de modelar, ela gostava de modelar corações. Um dia moldou
um azul outro cor de rosa e disse com aquela voz linda de criança feliz ,
esse e o seu e o meu coração!
Daquele dia em diante eu me apaixonei muito mais!
Hoje lembro dela com muito carinho. Crescemos, fui para outra
escola, ela se perdeu de mim!
Alguns anos depois, quase terminando o equivalente ao ensino fundamental,
ganhei um radinho de pilha da marca Hitachi. Um dia, de repente começou tocar
uma música da época do meu jardim da infância, que dizia assim...
“Que
saudades da professorinha que me ensinou o Be-a- Ba /
onde andará ‘ marianinha’
Meu primeiro amor onde
andará
Eu igual a toda petizada
quantas travessuras eu fazia / jogos de botões sobre a calçada
Eu era feliz e não sabia!
Aos domingos missa na
matriz /da cidadezinha onde eu nasci
Há meu Deus eu era tão
feliz...”
As recordações chegam de
enxurrada como uma cascata contínua, mas não da pra desaguar tudo aqui, agora!
Quando inicio escrevendo
essas memórias, estou sentado em um banco da praça na orla próximo aos
mangueirões de onde mostra o rio Amazonas que não para
de passar em frente a essa cidade linda chamada Itacoatiara. Não só
a cidade canção, mas a cidade que me encheu de inspiração e despertou um
escritor escondido há tanto tempo nas bancadas de consertos eletrônicos entre
transistores, resistores, capacitores e circuitos integrados , mesas e
berços de testes elétricos nos galpões das fábricas do
distrito industrial de Manaus.
Graças ao Eterno, hoje
posso ver essa paisagem linda e um barco que passa no rio, parece
que o seu motorista ou o “pratico” esta bastante apaixonado e a música diz no
seu radio ou toca CD “Que hoje a
tempestade já passou e nesse rio de águas calmas eu vou deslizar e
consolar meu coração”.
Uma história da floresta
Gutyerrez Oliveira
Sebastião já contava seus
18 anos de idade. E desde pequeno nunca saiu muito longe do lugar onde
nasceu. Jamais havia ido a cidade mais próxima da sua casa. Em
tempo algum fez questão de manter contato com o mundo lá fora. Um dia
alguém falou de rádio para ele, contou que era uma caixa quadrada que falava,
tocava e cantava melodias alegres e apaixonadas, falaram também de um
aparelho de televisão, que as pessoas apareciam bem miudinha dentro duma caixa
de vidro quando se ligava um botão, porém ele nunca teve oportunidade de
ouvir um, nem ver o outro. Quando ele ia pescar, no silencio da
floresta ficava matutando no que as pessoas contavam pra ele.
-Como aquelas pessoas
conseguiam entravam naquelas caixas, será que era um mundo diferente de pessoas
pequeninas?
E ficava cismando. Mas, a
fisgada do peixe no anzol e a esticada na linha fazia ele abandonar esses
pensamentos. Era pescador desde nenezinho de colo como ele mesmo costumava
dizer, ainda no colo de sua mãe ele fisgou “um baita” tucunaré. Vivia do rio é
bem verdade. Morava com seus pais numa cabana ali próximo as margens do
rio Caru (afluente do rio Urubu- AM). Conhecia quase tudo do rio e da floresta.
Seu pai e sua mãe a muito tempo se estabeleceram naquele lugar.
Mas, Sabá do Caru, como
lhe chamavam, só vivia embrenhado nas matas caçando e pescando que
nem um bicho do mato. Não tinha sequer documentos de identificação.
Um dia passou por lá uns agentes da FUNAI. Cadastraram Sabá do Caru,
como índio brabo do mato.
O tempo foi passando
muito rápido, a vida de Sabá não tinha pressa
–Correr pra que – dizia
ele. Um dia comprou uma canoa grande para facilitar seu trabalho na
pesca e outras coisas da floresta. Com muito custo comprou um motor rabeta e
foi tocando a vida. Casou com uma cabocla do rio, muito trabalhadora que
o ajudava bastante. Quando seus filhos começaram nascer e crescer,
mandou fazer para ele um grande batelão (barco grande de madeira ), Alguém
disse para ele.
-Sabá, por que você não
pede empréstimo no banco e compra um motor potente para este batelão?
Para isso, Sabá do Caru, teria que ir a cidade
com seus documentos ao banco e fazer o tal empréstimo. Sabá não gostava da
cidade, nunca foi índio, mas era matuto, homem do mato, vivia bem assim, a
cidade lhe causava arrepios, ouvia falar coisas assombrosas de lá , mas teve
que ir lá cuidar da documentação para comprar o motor para o batelão, naquela
época 40 anos se passaram (nem mais se lembrava) guardava com ele como
segredo sem muita importância, o cadastramento da FUNAI. Foi
o jeito ir até a cidade. Ficou frente a frente com o rapaz do escritório que
verificava o seu documento no computador. De repente o rapaz
começou olhar pra ele e pro computador, encarava Sabá do Caru. Que já
estava desconfiado e com vontade de perguntar o que estava acontecendo.
O rapaz do computador
olhou para ele e disse
–A máquina,
esta dizendo que o senhor não pode emprestar dinheiro do banco porque o senhor
é índio!
Sabá se assustou de uma
forma que não acreditava. Perguntou:
-Quem contou pra essa
maquina que eu era índio? Quem? Quem contou?
Olhou para a máquina
assustado porque achou que o computador era como um deus. Como aquela
máquina descobriu um segredo que ele guardava há tanto tempo
e nunca contara pra ninguém! Até porque nem tinha tanta importância!
-Mas, como isso pode ter
acontecido ?
Pensando assim declarou:
-Essa maquina é um deus! - ficou
intrigado- Quem contou meu segredo pra ela?
Voltou pro rio Caru sem o
empréstimo, contou o caso pra todas as pessoas de lá ,declarou
-Aquela máquina sabe tudo, é como um
deus!
CAFÉ TREMIDO
Gutyerrez Oliveira
Pra mim aquilo tudo era folia. O passeio começava quando a vovó
Cândida dizia tal dia vamos viajar, sairemos de Manaus no barco de recreio,
vamos descer o rio Amazonas e passar em frente a cidade de Itacoatiara. Eita!
Maravilha! Eu começava sonhar. Para mim, a viagem começava ali.
Era uma líder essa minha vovó! Cuidava de todos os detalhes, ela
queria atar as redes no barco bem cedo pra evitar imprevistos de última hora.
Quase sempre ficávamos todos juntos do mesmo lado da embarcação. Tudo pronto,
não faltava nada. Hora da saída. Cordas das redes de dormir atadas. Cordas de
amarras do barco largadas. Começava então a grande aventura tão esperada. O
timoneiro do barco fazia comunicação com a sala das máquinas através da
linguagem dos toques de campainha dando a partida. Algumas manobras para trás,
outras para frente. Marcha de viagem, lá vamos nós.
O meio do rio bem na frente de Manaus. A cidade é linda vista
dali! Era o momento que eu não gostaria de perder nenhum detalhe daquela visão
de começo de viagem, a margem esquerda do rio, os prédios antigos, os novos, as
casas de tijolos e de barros cozidos, os homens ribeirinhos trabalhando,
pescando em frágeis canoas. Curumins tomando banho no rio, pulando das jangadas
de toras amarradas para as serrarias. Batelões puxados em terra para
manutenção. As últimas casas da cidade iam ficando para trás, a refinaria da
Petrobrás com todos aqueles tanques imensos iam ficando também. Aquilo tudo era
fascinante. De repente na frente e bem perto dos meus olhos, eu podia tocar com
a mão uma das sete maravilhas do mundo(ao meu ver) “O encontro das Águas” lugar
cheio de mistérios e encantamentos, lugar de encontro do sobrenatural entre o
céu e a terra, as pessoas diziam muitas lendas daquele lugar de sarapantar
cabra macho. O barco passava naquele momento por cima das duas águas, que se
encontravam, se entrelaçavam, mas não misturavam, sempre foi assim. Lá íamos
nós descendo o rio. Os telhados das últimas casas da cidade se esquivavam dos
nossos olhos pelo meio das árvores. A próxima parada seria a cidade de
Itacoatiara.
No outro dia bem cedo, o momento que eu esperava ansioso nessa
viagem, era a hora de tomar o “café tremido”. Então alguém pergunta, o que é
café tremido menino? Ora, geralmente a mesa onde são feitas as refeições nos
barcos de recreios (em quase todos) ficam posicionadas bem próximas ou por cima
da sala das maquinas onde a trepidação do motor é bem mais forte. Então, com a
trepidação da máquina, tudo ali tremia. O leite, o café, a bolacha, a mão
daquele senhor de idade que não tirava o chapéu de massa da cabeça, o meu
apetite tremia, o sorriso das pessoas tremiam, até o olhar da minha avó Cândida
sempre atenta a tudo, tremia! A alegria de tomar café tremido pela manhã,
viajando em um barco e os meus olhos em contato com a paisagem das margens do
rio para mim era o máximo. O café com leite de gado da fazenda na xícara,
ficava trepidando, tremendo, formando ondinhas. As colheres e copos sobre a
mesa também trepidavam. Na hora de misturar o café com leite, era o grande momento
do rio Amazonas que se misturava com o rio negro, eu bebia aquele rio de café
saboroso acompanhado com fritos de trigo, pãezinhos, macaxeira cozida, roscas
de goma, pés de moleque, mingau de banana com tapioca e outros. Um verdadeiro
manjar matutino que encantava o viajante, (eu em particular) que depois de
satisfeito de todas aquelas iguarias, ficava imaginando aquele café ecológico
tremido, tremendo no meu “bucho”. Depois do café tudo acontecia naquele barco e
chamava a minha atenção, eu ouvia as vozes e saberes daqueles viajantes do rio,
lembro um senhor com mangas de camisa enroladas que ao falar tirava e colocava
o chapéu de palha na cabeça, fazendo graça, contava que na viagem passada, um
bode que vinha amarrado perto de uns alqueires de farinha d’água de repente por
um descuido qualquer, rasgou com a boca as folhas que encapavam o paneiro e
comeu toda a farinha do seu Maíco, que ele levava sempre para vender na
capital. Alguém passou e deu um balde com água para o bode que bebeu tudo,
bebeu estufou e explodiu, foi pirão de bode com farinha para todo o lado –
finalizou ele.
A gargalhada era geral das mulheres e homens que
estavam na rede, menos o seu Maíco que perdeu a farinha naquela viagem. Então;
a conversa continuava, rolava, falavam mil coisas e mil historias engraçadas ou
tristes, eu ficava vendo e ouvindo cada personagem naquele barco. Mais tarde,
pela hora do almoço, viria também o guisado de paca, a sopa tremida com
jerimum, maxixe, batata e quiabo escorregadio que descia na garganta goela
abaixo sem fazer força pra engolir, que maravilha! A trepidação do motor, o
caldo quente gostoso com o novo tempero do barulho do motor e da cozinheira do
barco, se misturavam com as pinturas naturais das paisagens. Aquela era uma
viagem real viajando nos sonhos das margens do rio, no meio da floresta.
NOTURNO NO SERINGAL
Gutyerrez Oliveira
Naquele noite tudo estava muito mais escuro do que nas outras noites.
Os homens não podiam ver nada do lado de fora do barracão. A chuva parecia não
ter fim, destilava por cima das árvores de seringueiras caindo gota a gota nas
folhas encharcadas. Dentro do barraco como isolados do mundo, viam o que
mostrava a lamparina com o vento remexendo as sombras assombradas da noite na
parede. No terreiro, um frio de gelo. Mas, por cima das árvores, no meio de
toda aquela escuridão, um olho amortalhado pairava por cima da palhoça vendo e
observando os homens frágeis que pitavam suas parroncas de tabaco para espantar
os carapanãs. A terra tremia, com zoadas de trovão e no negrume da noite
riscavam raios rápidos em ziguezagues de relâmpagos que iluminavam a noite
medonha, mostrando como num flash a silhueta das arvores assombradas. O olho se
aproximava daquele barraco no meio das trevas do seringal.
O homem na rede, doente de malária, ardendo em febre. A floresta
tremia dentro dele... O delírio era maior que a vontade de viver, e a morte se
aproximava bem devagarzinho na forma, na figura do rosto de sua mãe. E ele
conversava falando com ela no meio de toda aquela escuridão, pedindo que
trouxesse alguma poronga para acender e expulsar aquelas trevas, que devagar,
bem devagarzinho [...] estavam entrando, invadindo suas entranhas e
tomando conta de sua vida.
– Mãe... mãe ... - ele chamava esperançoso...
A morte lhe sorria bondosa.
– Mãe... mãe ... É você?
E ela apenas sacudia a cabeça sorrindo, confirmando ...
– Mãe, por favor, traz uma lamparina ! Para afastar essa escuridão
que esta me penetrando.
E a febre aumentando. E a febre aumentando.
Fazia frio de água da cacimba á boca da noite. Mas ele suava,
junto com as nuvens da tempestade. No delírio, aquelas vozes nas sombras da
parede contavam tantas histórias! Ele lembrava...
Contavam a história da mãe da seringa, que cansada de ver suas
filhas árvores escorrendo seu leite, colocava á noite um pedaço de espírito mau
na rede dos seringueiros, e os deixava doente.
Os mais velhos contavam a historia e aguardavam com esperança de
que um dia eles voltariam pra casa e seriam como heróis na sua terra natal.
Tudo mentira! Tudo mentira! Eles jamais voltariam daquele lugar.
Os deuses da floresta estavam raivosos, eles estavam nos temporais
e nos relâmpagos, e sem misericórdia alguma, se escondiam debaixo das folhagens
para pular de emboscada na roupa do seringueiro, que indo para sua casa, sem
perceber, se escondiam em sua rede de dormir para perturbá-lo á noite com
terríveis pesadelos. A casa de palha e a terra tremiam devido aos trovões.
E aquele homem continuava a conversar com sua mãe, ouvindo o pio
funesto de uma coruja agourenta, e o gargalhar de um rasga mortalha conversando
com sua morte em forma de sua mãe, vestida de mortalha roxa – respondia da
cabeceira da sua rede para a coruja que se acalmasse, pois em breve ela teria
seu defunto. Não tivesse pressa!
– Mãe... Mãe... Com quem você está conversando?
E a morte apenas lhe sorria bondosa.
O pio daquela coruja parecia uma contagem regressiva para o
abandono da vida. Fazia tanto frio, frio de argila molhada no corpo. A febre
ardia tanto. A agonia era tanta. O delírio era tanto, que ele preferia que o
sono chegasse logo dentro de toda aquelas trevas, naquela hora noturna, soturna
da noite!
De repente, no meio da febre, entre a visão da morte e da vida que
minguava, escorrendo sonolenta entre os seus olhos, aquele homem soube que a
sua rede tão companheira de descanso assim como a rede de todos os outros seus
companheiros lhe serviria de caixão, seria o seu derradeiro invólucro para o
apartamento apertado de cova da terra fria , por isso gritou num delírio de
ultima angustia
–Mãe, não posso me embrulhar... Esse lençol me apavora... E a
morte lhe pegou no colo sorridente e bondosa e o balançava consolando!
Cantando baixinho uma canção de ninar!
“Meu filho, não chores senão o dia vai custar a vir. Não vai doer
nada , porque morrer não dói, reza três ave-marias, entrega-te, muda a tua
roupa pra dormir, veste a pijama de mortalha, pois a coruja já parou de piar,
agora você já pode dormir.”
Ele olha então com um olhar já sem brilho pra morte, sua mãezinha
bondosa e vê o rosto, a sua mãe sorrindo...
Ele sorri também... Compreensivo... Resignado... Concorda ficar em
seus braços...
Ela tão bondosa... Seus olhos nos olhos dele...
Sorri dizendo – Não chores, não vai doer nada!
A chuva vai destilando gota a gota sobre as folhas encharcadas, a
terra parou de tremer dentro daquele homem.
Mais um Dia
Gutyerrez Filho
Jorge acorda e se
espreguiça. O Sol já nasceu faz tempo. É domingo e ele acordou tarde. Quase ao
meio dia. Para ele, esse é só mais um dia. Seus olhos estão pesados. O sono
insiste em ficar.
Enquanto Jorge dormia, um
garoto pobre, de dez anos morreu atropelado durante uma brincadeira onde quatro
rapazes que dirigiam alcoolizados corriam feito loucos pelas ruas dando freadas
bruscas. A mãe do garoto, chora desconsolada perante o corpo da criança no
necrotério,e os garotos que dirigiam, filhos de grandes empresários, vão ficar
impunes porque segundo o advogado deles: foi apenas um acidente.
Jorge levanta o corpo com
lentidão e senta na cama bocejando e espreguiçando-se novamente. Naquele
momento o presidente da república começa a sentir leves pontadas no coração. O
jornal dá a notícia que no Rio de Janeiro, numa favela, quinze pessoas morreram
num tiroteio entre policiais e traficantes. Entre os mortos está uma garotinha
de cinco anos com um tiro no peito, vítima de bala perdida.
Jorge olha o relógio na
parede, ainda é onze e meia. Ele decide deitar mais um pouco. Afinal chegou em
casa as seis da manhã da noitada. Foi uma noite e tanto! E além do mais é
domingo. Ele pode acordar tarde se quiser... Não muito longe dali, um homem de
quase setenta anos, limpa o árduo suor da testa enquanto trabalha duro limpando
e capinando, pra ganhar menos do que a metade da metade do que Jorge ganha. Ao mesmo
tempo, num apartamento ali perto, uma garota de quinze anos descobre que pode
estar grávida e não sabe quem é o pai. Do outro lado do país assaltantes
armados mantêm vinte e nove reféns em um banco.
Jorge fecha os olhos. Um
jovem estuda concentradamente pra tentar passar no vestibular pra medicina
enquanto seu pai bebe a décima lata de cerveja e assiste futebol. Um cozinheiro
sorri feliz, por ter aprendido uma nova receita. Um pai de família senta
desconsolado no banco de uma praça, pois acaba de perder o emprego e preciso
pagar o estudo dos filhos.
Jorge está prestes a
dormir. Começa a imaginar coisas e cenas sem nexo. Pensamentos avulsos vêm em
sua mente. Enquanto isso o aquecimento global está causando o derretimento das
geleiras nos pólos, e mudanças climáticas continuam ocorrendo no mundo todo.
Está chovendo muito na grande São Paulo, e as ruas estão encharcadas, uma
alagação está por vir. Na Somália, a mãe desnutrida da á luz um filho morto. No
Japão, um suspiro de alívio por uma alarme falso de terremoto.
Jorge finalmente dormiu. O
trânsito continua barulhento nas grandes vias, as pessoas xingam estressadas,
preocupadas. Operários continuam suando, furando o chão, quebrando pedras. Mas
Jorge não sabe disso porque dorme, e as janelas e porta do seu apartamento
estão bem fechadas. Pra ele aquele é só mais um dia. E ele está seguro ali,
embaixo do seu cobertor.
A Loja de Amigos
Gutyerrez Filho
Na porta de vidro estava
escrito “Entre”.
A garota entrou. Tinha dezesseis
anos. Rapidamente aproximou-se dela um vendedor, bem vestido, bem penteado, e
com um sorriso no rosto.
-Bom dia.
-Bom dia- disse a garota de
volta.
-Posso ajudá-la?
-Sim, eu estou dando uma
olhada.
Na verdade a garota tinha
olhado a loja já algum tempo e não tinha noção do que se vendia ali, só havia
visto o nome da loja:
“Loja de Amigos”
Talvez houvesse roupas pra
vender, talvez bijuterias, ou cosméticos... Não fazia mesmo idéia do que se
vendia ali e estava entrando só por curiosidade, mas então, ao entrar foi surpreendida por tal vendedor.
-Fique a vontade - disse
ele
Foi então que ela se
espantou ao ver. Dentro da loja haviam várias prateleiras e várias pessoas
dentro de vidros gigantes iguais aos de maionese. Eram crianças, homens,
mulheres, velhos, pessoas de todos os tipos. A menina sentiu um pavor enorme ao
imaginar que iria acabar sendo presa ali junto com os outros.
-E então quer olhar um
modelo?-disse o vendedor
-O q-que são eles?...Eles
estão vivos? São de verdade?
-Claro que são. Aqui
vendemos amigos de todos os tipos.
Então a menina olhou com
mais atenção e percebeu que as pessoas estavam se mexendo dentro dos vidros.
Não eram apenas manequins. Todos estavam atentos a garota e olhavam curiosos
para ela, ansiosos para serem comprados. Com o olhar eles pareciam dizer “ME
COMPRE”.
-Você quer uma amiga ou um
amigo?
-Eu não sei... - disse a
menina- uma amiga, eu acho
-Bom eu posso lhe mostrar
uns modelos, quer ver?
-Sim, quero
O vendedor se aproximou de
uma vitrine aonde havia uma garota linda num dos vidros, sorridente, olhos
claros, cabelos ondulados e vestida na moda.
-Esse modelo é bem
requisitado, é um pouco caro, mas é uma amiga que lhe dará algumas vantagens,
mas algumas desvantagens também.
-Vantagens?-quis saber a
menina
-Sim, a vantagem é que se
você andar com ela vai saber de toda a vida dela, e poderá contar toda sua vida
a ela. Tudo que você contar a ela, ela não contará a ninguém. Ah sim, outra
coisa é que se você andar com ela você vai ter status, já que ela é bem
popular.
-E a desvantagem?
-A desvantagem é que ela
sempre será mais bonita que você. E você será sempre a sombra dela. Os garotos
da sua idade vão preferir ela a você. Por isso você terá inveja dela.
- Hum, sei. E quais são os
outros modelos que vocês têm?
-Bom, tem essa aqui também.
O vendedor então mostrou
num vidrinho uma garota morena de cabelo encaracolado, bem descolada, e com o
olhar companheiro
-Esse modelo é
sensacional!-disse o vendedor- É de uma amiga super companheira, super amável e
super sorridente. Estará com vocês em todos os momentos. Acontece que ela é
muito inteligente e sabe conversar como uma adulta, assim, se vocês estiverem
entre amigos, ela será sempre o centro das atenções por causa da sua
graciosidade. Então esse modelo não é bom pra quem gosta de ser o centro das
atenções.
-E aquele modelo ali?- apontou
a menina para um vidro onde estava uma garota com olhar sincero, e com um
sorriso de menina sapeca
-Ah sim- disse o vendedor -
como eu poderia ter esquecido?Esse modelo chegou recentemente na loja!É um dos
melhores
-Quais são as vantagens e
as desvantagens?- quis saber a menina que agora já entendia um pouco do assunto
-Essa é uma amiga super
sincera, fala o que pensa, dá conselhos, adora a sua companhia, chora com você
nos momentos difíceis, sorri com você nos momentos fáceis, adora fazer compras,
fazer as unhas, sabe os melhores lugares pra ir, e você sentirá que ela é como
uma irmã pra você. A desvantagem é que ela é verdadeira demais e por falar
muito o que pensa, isso pode ocasionar algumas brigas, mas nada grave. Ela não
vai conseguir ficar muito tempo longe e logo virá pedir desculpas.
-Nossa então acho que vou
levar essa! Gostei muito
-Quer que eu embrulhe em
papel de presente ou coloque em uma sacola?
-Não pode deixar que eu a
levo na mão mesmo, eu já vou usando no caminho.
-Vai pagar em cartão ou em
dinheiro?
-Ah sim! Quanto é mesmo?
-Cento e cinqüenta cruzados
-Puxa!Até que não está tão
caro! Quanto tempo dura?
-Dura até três meses.
-Só isso?
-Sim. Depois disso ela
ficará amuada em um canto. Ficará orgulhosa e quase não falará com você. Depois
disso, ela apaga e não tem mais funcionamento.
-Mas três meses é muito
pouco tempo de amizade!
-Minha querida- sorriu o
vendedor -isso é apenas uma loja. Se você quer amigos de verdade, e que durem
pro resto da vida, você não vai encontrar em uma loja. Mas sim lá fora, nos momentos
mais difíceis da sua vida.
Chico e o Mundo
Gutyerrez filho
Naquele dia o cachorrinho
Chico quis ver o mundo. E saiu pelo portão da frente perseguindo uma borboleta
azul, que havia pousado em seu nariz enquanto dormia.
Ele vivia bem com os seus
irmãos e sua mãe, Lessie, num quintal espaçoso, cheios de árvores, numa casa
cheia de jardins na frente. Ele tinha donos maravilhosos que lhe davam carinho,
que lhe carregavam no colo, que lhe alimentavam com leite, e até com biscoitos.
Mas naquele dia ele quis ver o mundo, e saiu pelo portão da frente. Ele nunca
havia chegado tão longe, ele nunca ia para longe dos irmãos. Chico era
diferente. Era agitado. Latia pra cá, pulava pra lá. Puxava briga, puxava o
rabo de um aqui, a orelha de outro ali.
Sua mãe sempre apartava as
brigas, dando uma lambida, e ele vinha todo manhoso para perto da mãe. Tinha
ciúmes dela. Queria ela só para ele. Queria o leite dela só para ele. Queria a
tigela de ração só para ele. Queria tudo só para ele. Se alguém tentava fazer
carinho no seu irmão mais gordinho ele corria para perto, cutucava uma pedra,
pulava de um lado para o outro para chamar atenção para si. Queria todo carinho
só para ele. E mesmo assim. E mesmo tendo tudo só para si, algo o incomodava.
Algo ainda estava faltando. E ele acordava de noite, e saia de fininho de perto
do calor dos irmãos e de sua mãe. Saia da sua casinha e ia dar uma volta pelo
jardim, olhava as estrelas, deitado na grama, olhava para um lado e para o
outro. Queria mais espaço, mais coisas para descobrir, mais coisas para ver,
mais coisas para morder.
Chico escavava a horta dos
donos, espalhava o monte de folhas reunido no quintal, mordia as flores, caçava
formigas e besouros, mas rapidamente cansava daquilo e enjoava rápido de todas
as outras brincadeiras que ele mesmo inventava. Chico adorava aventuras.
Adorava o perigo. E fazia todo dia uma arte diferente, mas mesmo assim, tinha
algo errado.
Tinha alguma coisa faltando
e ele não sabia o que era. O pequeno Chico queria ver o mundo.
Chico odiava tomar banho,
fugia pra não ser pego e para não ir pra dentro da bacia d’água. E se o
pegavam, ele gania o tempo todo enquanto lhe ensaboavam e lhe escovavam, e
fingia sempre que caia sabão no seu olho, para ganhar mais atenção. Logo depois
do banho ele corria para a terra, não esperava que lhe enxugassem. Sacudia-se
todo, arrastava-se na grama, na terra e ficava imundo de novo. Lá ia ele para o
banho de novo! E dessa vez não deixavam que ele fugisse e o enxugavam com uma
toalha enquanto ele reclamava. Em seguida secavam o seu pelo com um secador e
ele adorava. Os irmãos morriam de medo do secador, mas ele não. Chico era
corajoso.
Sempre foi.
Por isso, saiu pelo portão
da frente. E logo esqueceu a borboleta e logo ficou encantado com o mundo lá
fora. Aquele grandioso e intrigante mundo que o esperava. Ficou rapidamente
eufórico balançando o rabo sem parar, latindo bravamente para a rua muito movimentada
com carros, ônibus, caminhões e bicicletas. Logo avistou, ali na calçada, perto
de uma lata de lixo, um gato vira-lata, rajado, fuçando atrás de comida.
Perseguiu o gato, que se
assustou e atravessou a rua rapidamente. Chico não sabia fazer isso. Ele não
sabia atravessar a rua. Mas mesmo assim ele correu atrás do gato. A rua era
movimentada, vinha um carro e freou bem a tempo de Chico passar correndo,
assustado, para o outro lado da rua. Coração acelerado, e apavorado com aquela
freada brusca, Chico não sabia mais como voltar. A rua era muito movimentada.
As pessoas que passavam ali, na calçada tentaram pegá-lo, mas ele correu
latindo. Fugiu! Fugiu daqueles estranhos. A borboleta azul onde estava? O gato
rajado onde estava? E Chico onde estará agora?
Passou um dia. Dois dias.
Três dias. Passou uma semana. Um mês. Chico não voltou mais para casa. Quem
esqueceu o portão da frente aberto? Os donos de Chico ficaram tristes. Seus
irmãos ficaram tristes. Sua mãe, Lessie, chorou triste. Onde estará o Chico? Onde
estará?
Nesse momento está chovendo
muito lá fora.
As noites são muito frias
lá fora. Chico está com frio? Chico está protegido da tempestade? Chico terá
arranjado algum amigo? Chico está com medo? Não. Não dá para imaginar ele com
medo. Ele é muito corajoso. Sempre foi. Ele adorava o perigo.
Ele era tão valente. Mas
será que um dia ainda vai voltar para casa? Será que está sozinho? Terá
arranjado um novo lar? Por onde anda o Chico?
Chico abandonou o quintal
onde morava e agora tudo está tão calmo. Tudo está tão calmo na casinha, na
horta. Tudo está tão sem alegria. Os seus irmãozinhos às vezes têm a impressão
que de uma hora pra outra ele vai aparecer, abanando o rabo e correndo agitando
tudo de novo. Mas talvez isso nunca mais aconteça. Talvez nunca mais ele seja
visto de novo. Ele levou consigo toda sua alegria naquele dia, quando saiu pelo
portão da frente.
E tudo o que queria era ver
o mundo.
Vozes Silenciadas
Gutyerrez Filho
Era uma garota linda. Tinha
cabelos negros, olhos misteriosos e usava botas da mesma cor da roupa. No rosto
maquiagem escuras e um piercing. Estava no cemitério, escrevendo em um diário,
foi quando viu um homem, velho, que cavava um túmulo. Era um coveiro. E ela
escreveu sobre o coveiro na sua agenda e sobre o que achava dele. Parecia um
homem pobre, desnutrido, fracassado - cavando covas pra ganhar dinheiro.Talvez
nunca tivesse lido sequer um livro. Talvez nem soubesse ler direito. De repente
o coveiro percebeu a garota gótica ali. E disse:
-Porquê você está aqui
garota, no Lar dos Mortos?
-Vim pra ficar sozinha, pra
pensar.
-Você não tem medo?
-De quê?
-Dos mortos.
Ana riu. O coveiro devia
estar querendo lhe assustar
-Eu tenho mais medo dos
vivos do que dos mortos - respondeu ela.
-Então cuidado.
-Com o quê?
-Pra você não se tornar
como eles um dia.
-Todos nós vamos morrer um
dia e nos tornar como eles- disse Ana
O coveiro parou então de
cavar e se aproximou dizendo
-Aqui estão enterradas
pessoas. Muitas pessoas. Vítimas do tempo, de doenças, de acidentes,
incidentes. Aqui não estão enterrados só os corpos dessas pessoas, mas também
seus pensamentos e idéias nunca reveladas. Sentimentos reprimidos. Amores
secretos que jamais sairão do túmulo, mas que poderiam ter sido maravilhosos.
Pedidos de perdão nunca feitos. Coisas que deveriam ter sido resolvidas e não
foram. Sonhos que poderiam mudar o mundo. Sabedorias e conselhos que poderiam
mudar o rumo de uma vida e até quem sabe salvar uma vida. Todas essas coisas
agora estão aqui, enterradas e jamais sairão desse lugar. Tudo isso. Todas
essas coisas estão aqui, para sempre, aprisionadas na terra adormecida dos
corpos mortos. Essas coisas estarão para sempre gritando um “sinto muito” que
nunca veio para uma pessoa querida ou “eu sempre te amei” para uma pessoa
amada. Arrependimento... Essa terra está cheia de arrependimentos...
O coveiro suspirou fundo e
perguntou
-Qual o seu nome?
-Ana
-Ana. Não deixe que sua
vida se torne algo cheio de arrependimentos. Não deixe sentimentos escondidos
até o túmulo. Não esconda amor no coração. Viva a vida. Ame. Grite. Não venha
se tornar pó um dia, sem dizer o que sente para que seus sonhos se tornem
apenas um petróleo onírico aqui desse lugar, onde todas as vozes silenciadas
gritam em silêncio.
Depois disso o coveiro se
foi. E Ana Também.
Aquelas palavras do coveiro
ficaram. Anos depois ela passou ali, e já era uma mulher. Ela passou de carro e
parou na frente do cemitério, abaixou o vidro e procurou por aquele coveiro com
os olhos, mas não o encontrou. Resolveu entrar e procurar por ele. Foi até o
lugar que estava naquele dia que conversou com o coveiro. Mas não o encontrou
também. Perguntou para um vigia sobre o tal coveiro contou como ele era e
que fazia tempo que tinha lhe visto. O vigia lhe informou que era novo ali e
que não conhecia ninguém assim por ali. Ana então foi embora, e na saída
do cemitério, entre um tijolo do muro e o cimento da calçada, encontrou uma
flor bonita. Então sorriu. E lembrou do que havia aprendido duas coisas com o
tal coveiro que nunca deixaria sua vida ser um arrependimento e que coisas
bonitas e palavras sábias podem vir dos lugares mais inesperados.
Acidente na Avenida
Gutyerrez Filho
Uma multidão aglomerada
atrapalhava o trânsito na avenida principal.
Pessoas curiosas se
aproximavam, velhas, senhoras, estudantes fardados, camelôs, vendedores
ambulantes de bombons. Panelinhas aqui e ali conversavam sobre o que havia
acontecido.
Percebi logo de cara.
Havia acontecido um acidente. Me aproximei para ver quem havia sido a vitima.
-Eu acho que ele ainda está
vivo- comentou uma senhora com um homem
-Ele desmaiou na hora -
dizia uma jovem para o seu namorado que a abraçava como que tentando acalmá-la
do susto de ter visto o acidente.
Ouvi outros comentários
como:
-Ela está morta?
-Acho que sim, ela está
cheia de sangue
Ele ...e ela? Quantas
pessoas eram afinal?-pensei eu
Fui me aproximando,
penetrando a multidão. Não dava pra ver nada. Tinha muita gente na minha
frente. Alguém se esbarrou em mim, saindo do aglomerado dando espaço pra que eu
entrasse nele. Tudo o que eu podia ver era uma picape tombada no meio da
avenida. Ouvi um barulho de sirene. Olhei pra trás e vi que o carro da
ambulância parava ali perto. Penetrei a multidão, me espremi para entrar
naquele aglomerado de gente curiosa. Empurrei uma mulher para de uma vez por
todas ver quem havia sido a vítima. Fiquei surpreso e chocado! Era uma garota
da minha idade! Fiquei mais surpreso ainda ao perceber que eu conhecia o
rosto. Será que era quem eu estava pensando? Mas que droga! Eu não podia
acreditar naquilo.
Na quarta série eu havia
estudado com uma garota chamada Carolina, não lembro o sobrenome. Albuquerque,
ou Oliveira, tanto faz. De início não nos falávamos direito. Só trocávamos
algumas poucas palavras que eram de “oi” a “me empresta um lápis”. Eu tinha um
amigo, parceirada que também estudou comigo da quinta série em diante. O nome
dele era Carlos. E ele vivia dizendo
-A Carolina esta afim de
você.
Eu não acreditava, mas ele
dizia que toda vez que ela me via ela sorria, e que ficava me olhando quando eu
passava. Comecei a achar então que aquilo podia ser verdade, pois comecei a
prestar atenção no jeito dela. Acontece que eu já era afim de uma garota, uma
da minha rua que sempre jogava vôlei com a gente. Por isso não dei muita bola
pra essa história. Aquele ano terminou e fomos todos pra sexta série. Eu,
Carlos e Carolina. O Carlos continuou dizendo que aquela garota se amarrava em
mim. Dizia:
-Pô, ela é bonitinha, se eu
fosse você eu ficava com ela
Eu inventava uma desculpa e
mudava de assunto. Como eu disse, tinha a garota do vôlei.
Naquele início de ano
recebi um bilhete, escrito numa folha de caderno assinado como “admiradora
secreta”. Estava mais do que na cara que era coisa da Carolina. O bilhete dizia
que eu era o cara certo pra ela, tudo que ela sempre havia sonhado e que ela
iria lutar por mim até o final e outras coisas desse tipo. Uma verdadeira
declaração de amor. Fiquei lisonjeado com a carta. Até pensei em ficar de uma
vez por todas com ela. Mas pelo jeito a parada ia ser dura. Ela devia estar
apaixonada e ia se envolver demais. Pensei bem antes de tomar qualquer decisão.
Resolvi também que não mostraria a carta ao Carlos. Queria resolver aquela
história sozinho. Continuei a Recber bilhetinhos. Mais uns três ou quatro. E a
Carolina quando encontrava comigo sorria e tentava se aproximar e puxar
conversa. E isso resultou em uma leve amizade. Acabamos nos aproximando. Agora
conversávamos mais abertamente, eu fazia ela rir, ela me fazia rir. O Carlos
dizia:
-É isso aí meu irmão. Não,
dispensa não!
E então houve mais um
bilhete, o último. Dessa vez um bilhete diferente. Em uma folha colorida,
perfumada e de cor rosa. Ali Carolina escreveu um poema e revelou sua
identidade dizendo que me amava e que não podia viver sem mim. Eu não podia
acreditar naquilo. Aquela história estava mais séria do que eu pensava. Toda
aquela declaração eu só podia corresponder de um jeito e fiz o que Carlos já
havia me dito. Fiquei com Carolina atrás da quadra da escola. E aí então
namoramos o resto daquele ano. A Carolina vivia me trazendo bombons,
bilhetinhos, cartõezinhos. Tudo ia bem entre a gente. Foi então que aconteceu.
Na sétima série a garota do vôlei me deu bola e aí ficou claro o que ia
acontecer. Traí a Carolina com ela. E rapidamente todo mundo ficou sabendo.
Inclusive ela. Ela não me disse uma palavra, apenas se afastou. Não foi tomar
satisfações, nem disse nada. Apenas se afastou. Desde então não nos falamos
mais. Evitávamos nos encontrar ou cruzar o olhar e foi assim durante toda a
sétima série. Na oitava série logo no início do ano eu percebi a mudança da
Carolina. Ela estava com um novo visual. Algo meio rebelde. Como se estivesse
revoltada. Havia pintado o cabelo, colocado piercing e feito uma tatuagem.
Agora ela respondia aos professores, xingava, gritava com os outros. Aquela
nova Carolina pouco lembrava a de antigamente que eu havia conhecido e
namorado. Aquela menina tímida e sorridente que evitava me olhar agora ela já
me encarava. E quando fazia isso era sempre com um olhar de raiva que parecia
dizer:
“A culpa é toda sua!”
Então ela começou a namorar
com uns caras bem mais velhos que ela. Um dia apareceu bêbada na escola.
O Carlos começou a dizer:
-Viu o que você fez? Feriu
o coração da moça, cara.
Eu dizia que eu não tinha
nada a ver com isso. Final eu não podia acreditar que a garota havia mudado
totalmente por causa de um coração partido
Mas, eu não era o tipo de
cara que entendia muito de coisas do coração. A oitava série continuou e
Carolina continuou aprontando. Volta e meia toda a sala comentava
-Já sabe da última. A
Carolina saiu de casa.
-Já sabe da última a
Carolina está com os olhos roxos porque apanhou do namorado.
-Já sabe da última... A
Carolina desistiu da escola
E assim ela sumiu. Não a vi
nunca mais. Passou-se mais um ano. Dois anos. De vez em quando eu havia por aí.
Seu olhar já não era mais de raiva, agora era de desprezo.
Aí segui minha vida,
Carlos também seguiu a dele, se mudou pra outra cidade. A menina do Vôlei que
aliás se chamava Gabrielle, se casou cedo com um cara que veio do sul, filho de
um empresário. Tive várias namoradas depois disso. E essa história ficou no
baú.
E agora ao passar pela
avenida vejo de repente esse rosto que eu um dia conheci. Carolina, envolta em
uma poça de sangue. Uma coisa terrível de se ver. A última notícia que eu havia
ouvido sobre ela era que ela estava namorando com um cara que tinha uma picape
e que só andava em alta velocidade. Já havia batido várias vezes, mas nada
desse tipo. Agora vejo o casal,
-Provavelmente a garota
ultrapassou o vidro do carro na hora que a picape bateu a toda velocidade no
poste. O rapaz e a moça estavam alcoolizados- ouvi alguém comentar
E aquilo me deixou pensativo.
E se eu não tivesse ficado com a garota do vôlei e não houvesse magoado a
Carolina. Ela teria um destino diferente? Ela teria andado com más companhias
tentando chamar a minha atenção? Ela teria ficado revoltada? Será que foi
tudo culpa minha? Será que foi tudo uma reação em cadeia, uma bola de neve? Não
sei dizer. E nem sei dizer também se ela estava viva, ali, caída no meio da
avenida.
Porcos na Alma
Rosa Neves
O sol ia se pondo. Eu
olhava aqueles raios por entre as árvores. Era belo e misterioso o pôr do sol.
Nos meus sete anos de longa vida, (me sentia uma mocinha) eu não conseguia
compreender. Eu pensava “Por que o sol vai embora?”.
Nesse tempo de férias
estávamos na fazenda de meu Pai. Casa Grande avarandada, com assoalhos bem alto
preparados por causa da grande cheia do rio Amazonas, mas era tempo de
verão e tudo estava seco. Na fachada da casa tinha uma placa com letras,
eu ainda não sabia ler, me disseram que ali estava escrito “Fazenda
Segredo”. Era na beira do rio Amazonas no meio da floresta. Tinha de tudo lá:
galinha, pato, pinto, cabra, cabrito, boi, vaca, cavalo e porco.
Naquela hora do pôr do sol,
próximo onde eu estava sentada não havia silêncio. É que bem próximo a
mim uma enorme porca gorda cheia de bacorinhos (porquinhos)estava
deitada e eles tentando mamar gritavam fazendo enorme barulho. Não
sei ao certo quantos eram, sei que eram muitos, havia dois diferentes, eles
estavam enfeitados com laços no pescoço. Eu não estava ali por acaso, esperava
o meu Cupuaçu mamar, assim era o nome do meu porquinho. Era marrom, roliço,
igual a um cupuaçu. Ganhei esse porquinho de meu pai, o outro era de minha
irmã.
Era tão lindo, mas, me dava
muito trabalho e preocupação, eu ficava seguindo e cuidando dele durante o dia
todo. Desde que o ganhei, pegava ele no colo como se fosse um bebe, parecia que
eu não agradava muito, porque ele gritava demais, sempre agoniado não ficava
quieto, esperneava querendo ir para o chão. Pegava ele no meu colo acarinhando,
mas ele sempre ficava roncando, quando não gritando.
No dia em que eu e minha
irmã ganhamos os nossos porquinhos, papai nos chamou e disse:
-Filhas escolham os seus
bacorinhos!
Olhei e o meu coração bateu
forte quando deparei com o Cupuaçu, todo marronzinho, lindo, me apaixonei por
ele. Peguei-o no colo e fiz uma promessa:
-Eu vou cuidar de você.
Eu queria dar um banho
nele. Minha mãe me ajudou. Deu banho, perfumou, colocou laçinho de
fita bem colorida e bonita com o nome que eu tinha escolhido e batizado.
Cupuaçu na verdade era uma porquinha.
Eu então doei minha
almofadinha para Cupuaçu dormir confortável. Cupuaçu não queria saber de
almofada, agoniada grunhia, guinchava, roncava e esperneava.
- Deixe ele no chão um
pouco para mamar, disse minha mãe aperreada com tanto grito.
Soltei Cupuaçu que saiu em
disparada atrás da porca; sim, daquela porca , porque a mãe de
cupuaçu agora era eu. Corri atrás, a porcona tinha resolvido ir para uma
poça de lama se lambuzar e Cupuaçu para minha tristeza se atirou com toda
alegria na lama junto com a mãe e os irmãos.
Voltei chorando porque
minha porquinha estava toda suja. Inconsolável, chorava muito e soluçava, minha
mãe parecia sorrir do meu sofrimento e eu me desesperava em ver a minha amada
Cupuaçu na lama.
-Não chore e deixe que ela
possa descansar um pouco, depois nós daremos outro banho nela.
Fiquei sem entender, porque
cupuaçu estava cansada?
Ela estava no meu colo o
tempo todo! Não a deixei andar a manhã inteira!
Então novamente minha mãe e
eu pegamos Cupuaçu e demos outro banho nela, laçinho colorido de fita
outra vez em seu pescoço, fiz questão de passar quase toda a minha
lavanda em Cupuaçu, que gritava quanto mais eu passava talco e lavanda.
Então nesse por do sol eu
esperava Cupuaçu mamar para pegá-la no colo novamente. Era bonito o por do sol,
mas eu estava preocupada, a noite estava chegando e Cupuaçu ia ficar lá fora da
casa no escuro. Então me perguntava, porque o sol vai embora? Naquele
momento aquele era um problema sério que eu não podia resolver. Era a minha
preocupação. O problema era do meu tamanho. Cogitei em fazer uma tentativa de
levar Cupuaçu para dormir comigo em minha rede. No momento refleti: que se
mamãe descobrisse, era “peia” na certa. Então fui falar com ela. Minha mãe
respondeu:
-Nem pense mocinha! Ela vai
ficar bem, está com a mãe dela e amanhã você brinca outra vez com ela.
Não foi uma explicação
muito convincente. Fiquei magoada com mamãe. Mas argumentei, - mãeee, eu não
coloco ela na rede não, ela vai dormir na almofada em baixo da minha rede.
Mamãe disse: - Quando
mamãe diz não é não, certo?
- Certo! – Respondi- Custei
dormir naquela noite. Ouvi o piado da coruja e pensei; - será que esse bicho
vai pegar minha porquinha? Meu coração ficou apertado, Cupuaçu devia estar com
medo do escuro e dos barulhos dos bichos do mato. Meus olhinhos se encheram de
lágrimas e dormi abraçada com a almofada de Cupuaçu.
De manhã bem cedo, nem fui
pegar o meu leite na caneca lá no curral. Fui atrás de Cupuaçu, que estava toda
suja novamente, foi outra maratona e os dias foram se passando da mesma
maneira, nem eu, nem Cupuaçu estávamos felizes. Cupuaçu já não gritava tanto no
meu colo, mas continuava a correr para a lama assim que tinha uma chance, eu
queria dar queijo pra ela, Ela queria era babujo, restos de frutas e comidas.
Tentei dar um pedaço de carne assada com feijão, carne de paca, Cupuaçu não
quis. Que dificuldade era a minha! Realmente era um problema sério para mim, a
minha querida Cupuaçu não queria ficar limpinha e nem deitar na almofadinha
cheirosa.
Isso me deixava uma menina
pensativa e até um pouco tristonha. Eu tinha tantos planos para Cupuaçu. Queria
fazer dela uma porca limpinha e cheirosa. Mas Cupuaçu não queria saber de meus
sonhos, o seu prazer estava em deitar na lama, fuçar o chão e ficar emporcalhada.
Eu estava pensativa. Cupuaçu não queria saber daquele mundo de limpeza e
perfumes. Meu pai me observou, me viu assim, foi até mim e perguntou:
-E então
minha filha, onde está a sua porquinha?
-Ela
fugiu pra lama papai! Respondi tristonha. - Por que pai? Por que ela
prefere a lama em vez da almofada cheirosa? Hein pai?
-Porque a
lama já está na alma dela minha filha - disse meu pai.
Então eu
entendi...
Passei a observar a alegria
de Cupuaçu de longe, balançando o rabinho sujo de satisfação. Eu olhava o pôr
do sol e me perguntava “Por que o sol vai embora?”.
Um dia na enchente
Rosa neves
Manhã chuvosa, um pouco fria. Ela se espreguiçou na rede e olhou
para o lado, em outra rede bem perto, estava a irmã, já acordada, com aquele
sorrisinho conhecido. Sorriram uma para a outra, e automaticamente pularam da
rede quase ao mesmo tempo, correndo, foram para a janela olhar os pingos de
água caindo no rio.
Era tempo de enchente. A água passava por debaixo do assoalho da
casa, dando a impressão de estar sempre viajando em um barco. A casa era
feita de madeira, o assoalho também, com pernas altas, prevenindo as grandes
enchentes. As duas irmãs queriam ir para a varanda da casa onde a visão era
melhor, lá dava para ver os peixinhos nadando sob a água, tinha uns bem
pequenos fugindo dos grandões que queriam devorá-los. Assim como na vida onde
também há muitos peixões querendo devorar os peixes pequenos, que vivem lutando
para sobreviver neste tempo de grandes “enchentes”.
A varanda era espaço proibido, para elas, pelo perigo de cair na
água e se afogar. Seus pais tinham grande preocupação com isso, pois volta e
meia sabiam da morte de alguma criança que caindo no rio se afogava. Uma
tristeza só.
Os pingos da chuva que incidiam no rio era uma atração à parte
para Lalála; assim lhe chamava sua irmã Balila. Eram apelidos carinhosos com
que eram chamadas.
Lalála na sua meninice olhava em torno e refletia:
-Tanta água, para quê...?
A água caia do céu, e ao redor era água por toda parte,
havia árvores que já estavam submersas, e a correnteza era forte, trazendo e
levando coisas sem parar, por debaixo da casa e nas laterais. Ficavam ali
apreciando, aquela beleza. Lá vinha um pedaço de pau, descendo rio abaixo e a
disputa começava:
- Esse barco é meu!
- Não, é meu!
- Eu vi primeiro!
-Não quero mesmo, esse é feio!- E a peleja continuava.
Naquele dia marcante, a chuva foi afinando, afinando até passar
por completo. Haviam dias que chovia o dia todo. A mãe falou:
- É hora de escovar os dentes mocinhas!
Rapidamente pegaram as escovas e foram para a escada, onde mais da
metade já estava debaixo da água. Sentaram no degrau e Balila ficou
brincando com as mãos dentro da água, de repente um grito se ouviu, então ela
levantou a mãozinha gritando, e atracada com os dentes ao seu dedinho
indicador, estava a malvada piranha. O pai-herói correu em seu socorro. Foi uma
mordida feia. A mãe fez o curativo. E foi aquela correria, depois que
passou o susto, o pai falou:
- Eu vou buscar o leite!
Lalála correu para pegar a caneca de alumínio com alça. Ouviu a
irmã soluçando dizer:
- Eu vou também!- Lalála então muito feliz pegou a caneca da
irmã. Era uma rotina irem com o pai até a maromba tirar o leite pela
manhã. Foram para a canoa, Lalála com lágrimas nos olhos observava Balila que
ainda soluçava no resto de choro, queria poder tirar da irmã aquela dor
em seu dedinho. E as recomendações da mãe vieram:
-Se assentem bem no meio da canoa, cuidado! Não ponham as mãos na
água, não se sujem!
O pai começou a remar e lá foram rumo à maromba.
Maromba é um curral de boi flutuante, com toras grossas de
madeira amarradas umas às outras, como jangadas enormes, com tábuas por cima
formando uma grande plataforma, ali ficam os bois, cavalos, carneiros, na
época de enchentes, até o rio secar outra vez. E nos tempos de seca a maromba
virava um lugar perfeito para brincar e para lazer da família.
A maromba da casa de Lalála, estava presa embaixo de árvores, onde
o gado podia se proteger do sol forte e desfrutar das sombras.
Antes de chegar à maromba, a passagem pelas ingazeira e
árvores mari-mari, era certa! o pai colhia as frutas.
Ao chegar no curral, enquanto o pai tirava o leite, subiram na
cerca e ficaram apreciando a visão dos bezerros querendo mamar, andavam de um
lado para o outro, uma vaca mugindo, os cavalos relinchando.
Hora da mamada! O pai encheu as canecas, com leite fresquinho
e elas tomaram ali mesmo.
Balila olhou para Lalála sorriu e disse:
- Olha o teu bigode branco! Ela já havia esquecido o susto da
piranha.
- Ta doendo? – Perguntou Lalála.
–Ta. Respondeu a irmã.
- Papai do céu vai curar, ta bom?- Se abraçaram ali. Uma cuidando
da outra. Como selando um pacto de amor. Aquele dia estava sendo marcado na
vida delas. As irmãs maiores estavam na cidade estudando. Só voltavam nas
férias.
De volta para casa, o pai passou onde havia colocado uma
malhadeira e pegou diversos peixes.
Lalála estava preocupada. E agora? A irmã não podia mais fazer
nada. Tinha que ficar quietinha com aquele dodói, a mão levantada, para não
bater, se apressava o passo, doía.Tinha que andar devagarzinho. Não podiam mais
balançar na rede tão alto, como gostavam porque também doía o dedinho. E agora?
Correr pela casa também não podia. O dedinho levantado para cima era a novidade
do momento.
O que fazer então? Duas crianças cheias de energias presas em uma
casa sobre as águas do grande rio Amazonas. Brincar de boneca não podiam,
Balila estava impossibilitada de pegar qualquer coisa, cheia de manha. A mãe
com cuidado e tanta dó da filhinha mordida pela perigosa piranha, fazia
mingaus e chás para Balila.
As crianças da vizinhança chegavam de canoas, eram
meninos e meninas a partir de três anos, vinham pegar leite, nas panelas.
Às vezes traziam alguma coisa para trocar.
As duas entediadas porque não tinha espaço para andar nem se
movimentar muito. Resolveram conversar: E foi o dia de repetir a história da
piranha por diversas vezes, e cada vez que elas recomeçavam mais detalhes iam
acrescentando.
Lalála disse :
-Tu viu o olhão dela arregalado para mim, dizendo – Eu vou
te pegar!
A irmã respondeu:
–Vi. E ela disse para mim:
-Depois que eu te devorar eu vou comer a Lalála e todo mundo da
casa, não vou deixar ninguém.
A biografia já estava tão prolongada que a piranha já tinha virado
um verdadeiro tubarão. A história da pequena piranha já havia se transformado
em uma fábula de terror. Se o pai herói, não fosse mais rápido, e tão forte,
ninguém mais existiria naquele “lar-ilha”, e se mãe não fosse tão eficiente no
curativo a água estaria toda vermelha de tanto sangue que saía do dodói. O
pior! É que se o pai e a mãe não existissem elas estavam perdidas. Bateu um
medo no peito, correram rumo a cozinha para perto dos pais. O pai tecia uma
tarrafa, a mãe já estava com a mesa pronta para o almoço. Sobre a mesa, bandas
de tambaqui assadas cheirando e em uma panela fumaçando uma caldeirada de
tucunaré. As pessoas que moravam na casa foram chegando para o almoço. O tio
das meninas havia pescado um enorme pirarucu que ia vender no comercial
flutuante próximo dali.
No decorrer do almoço o tio foi narrar a pescaria; contou que viu
um jacaré de uns cinco metros que quase pegava ele. E as outras pessoas
argumentavam;
- Porque não deu um tiro no bicho?
-Se eu matar um jacaré me prendem! Respondeu.
- Mas se ele comer sua perna? Vão prender o jacaré? -Argumentou
outra pessoa.
Fazendo mesuras e sem respostas, mudaram de assunto. Depois do
almoço foram fazer a sesta.
E o dia foi decorrendo. O pai já havia voltado dos seus trabalhos
diários.
A mãe então dirigiu a oração em família como sempre,
dizendo:
-Família que ora unida, permanece unida. Depois desse
momento o pai como costumeiramente pegou a viola, já com o sol se pondo e
cantou uma canção de lamento:
“Se o nordestino fala da seca
Da aspereza do seu chão
Eu falo cá do meu norte
E da sua inundação.
Ah! Eu deixei Maria Rosa
Muitos pés de plantação,
E arribei pra vila da barra
No primeiro regatão
Eu sou gente, que vivo no norte
Lutando com a vida em busca da sorte
Eu sou gente que vivo no norte
Buscando a vida e fugindo da morte”
E assim terminou um dia na enchente...