sábado, 11 de fevereiro de 2023

Historia de Igapó - cap1

 

1-VISITAÇÃO

 

Em outra noite muito negra de chuva, quando os pingos grossos faziam um alarido abafado na palha do telhado e escorriam como pequenas enxurradas pelas laterais do lado de fora da casa, Cândida, sentada na rede iluminada pela fraca luz da lamparina, ainda mastigava uma lasca de pirarucu retirada da sua famosa lata que lhe servia como merendeira. Guardava-a sempre com farinha e um pedaço de peixe assado. Então, onde estivesse, ao sentir fome, abria discretamente a lata, rasgava uma lasca do peixe, e como sempre dizia; “vou dar uma queda no cão.” Então, com a mão cheia de farinha retirada da lata, e com pontaria certeira, jogava na própria boca e matava a fome daquele momento.

Minha avó, Cândida olhou dentro dos meus olhos, como se quisesse derramar dentro deles toda a minha vida já vivida, como um filme em longa-metragem. Pois ela conhecia a minha história. Começou contando como foi a noite do meu nascimento.

 

– Logo que você saiu do ventre de sua mãe...

 

A partir dessas palavras vindas dos lábios de Cândida continuei ouvindo-a, mas, comecei a construir cenas na minha cabeça. Imagens cinematográficas surgiram como se fosse o filme da minha vida que eu assistia. O protagonista e as personagens daquela história eram meus. A bolsa d'água estourou. Naquele instante eu estava saindo do ventre de minha mãe. Sentia a passagem, a saída do escuro para a claridade, e o meu corpo ensopado de sangue e restos de parto. Eu deslizava daquele lugar apertado para fora. Cândida me colocou no colo, senti quando a faca afiada cortava o cordão umbilical que me ligava, cheguei a ouvir meu próprio grito desesperado buscando o ar que me faltava, dei um grito tão medonho, que no susto, levantou minha mãe que ainda estava deitada na areia da margem do rio no porto das canoas, aonde eu acabava de vir ao mundo. Nasci com a metade do corpo para fora e outra metade para dentro d’água.

O cheiro de pitiú invadiu o ar e misturou-se com as águas do Paraná, imediatamente ouviu-se uma voz:

– Me dá ele.

 Cândida olhou para os lados e não viu ninguém

– Me dá ele – insistiu a voz. Era uma voz masculina e firme, cheia de autoridade.

Cândida sabia do que se tratava.

– Vá embora! – disse ela, e me cobriu melhor com o lençol, depois me abraçou para que eu não sentisse frio. Ajudou minha mãe a caminhar da beira do Paraná até o nosso barracão de morada e nos pôs a salvo. Já dentro, olhou para fora através da janela aberta. Percebeu mexidas e chiados revirando o matagal ao redor da casa. Sentiu um vento gelado e cortante tocar sua pele.  Algo se aproximava vindo da floresta. Um animal? Talvez. Imediatamente ela fechou todas as janelas da casa e trancou bem a porta de entrada, percebeu quando alguém do lado de fora veio se achegando, e colocou-se muito próximo à janela fechada, falando com a respiração ofegante, uma voz rouca e assustadora que dizia:

Me dá ele.     

Por um momento Cândida sentiu-se confusa. Afinal de contar aquela era uma voz de verdade ou apenas algo de sua mente?

Contavam muitas histórias sobre as matas, e o desaparecimento de bebês que eram levados pelos espíritos e bichos da floresta e do rio, mas de uma coisa ela tinha certeza, eu não seria levado. Ela precisava ser forte e protetora, ajudar também minha mãe durante a quarentena do resguardo.

ME DÁ ELE!  A voz agora parecia mais agressiva. Vinha do lado de fora da casa. E ali a tal criatura não podia entrar porque não havia sido convidada. Toda criatura, ou bicho do mato só pode entrar numa casa se for convidado. Isso é um fato conhecido em todo lugar. A casa é um lugar sagrado, quando o amor faz parte de uma família, protege o lugar das vozes e dos espíritos das trevas.

Naquela noite ela caminhou até a janela, orou pedindo e clamando a Deus que mandasse os seus anjos guardadores de homens, com suas espadas poderosas para que protegessem seus filhos, seu netinho ainda de colo, e toda sua casa.

Então, num arranque de coragem gritou bem alto, para que sua voz fosse ouvida e penetrasse como faca afiada, nos ouvidos noturnos e tenebrosos que estavam ao redor da casa. As palavras ecoaram cortantes, levadas pelo caminho da meia noite, para que todos os seres viventes entranhados no meio das sombras ouvissem sua voz que dizia:

 

“Em nome do Deus Eterno! Esconjuro-te filhos do tinhoso”.

 

Mesmo assim, aquele mal parecia não ter ido embora. Todos os dias, depois de ajudar a minha mãe a me fazer dormir, Cândida ia para a varanda da casa, olhava a floresta envolta em um breu total. Era bem medonha de se ver. Mesmo a luz da lua cheia tão radiante não penetrava naquelas matas. Ela tinha sempre a impressão de ver sombras que pareciam trocar de lugares com as outras por detrás das árvores. Imaginava ver algo, qualquer coisa no meio daquelas árvores entremeadas com a tosca luz, que mostrava silhuetas absurdas e monstruosas de índios e abantesmas, tinha a impressão que via contornos de pessoas e fixava os olhos na escuridão. Sua mente e visão confundiam-se entre as folhagens noturnas. A mata durante a noite, e até de dia, é sempre misteriosa e assustadora!

Quando ela fechava todas as portas e janelas da casa, ouvia passos do lado de fora, como se alguém estivesse rondando a casa, buscando um meio de entrar. Cândida acordada, em silêncio ficava atenta. E se preparava para pegar o facão que estava bem ao lado de sua rede. Nessas horas lamentava que seu finado marido não estivesse mais ali. Mas não podia apenas lamentar, tinha que proteger sua família.

Com seus ouvidos atentos ela ouvia lá fora os grilos e as cantorias dos sapos em um coro hipnótico e uníssono. As vezes também havia o grito do toró, um tipo de rato do mato enorme que comia cacau nos pés de cacaueiros que ficavam em volta da casa. Ele fazia barulhos nas árvores intercalados gritando

– Toró!... Toró!

Era amedrontador.

Depois de Cândida me contar tais fatos, eu, de olhos arregalados ficava em silêncio me perguntando a quem pertenceria aquela voz que minha avó tanto ouvia sussurrar insistentemente pedindo que ela me entregasse.

“Me dá ele!”

Sentia vontade de perguntar a ela que voz era aquela, mas não tinha coragem, pois tinha mais medo ainda da resposta que ela podia me dar.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

livro menino virtualn

 


Gutyerrez Oliveira Monteiro

Rosa Neves Monteiro

Gutyerrez Filho

 

 

O Menino Virtual

  E

OUTROS CONTOS

 

 

 

Editora ÁGAPE

 

 

2ª Edição,

 Manaus, 2020

_______________________________________________________

 

Monteiro, Gutyerrez Oliveira, 1955- O Menino Virtual e Outros Contos / Gutyerrez Oliveira Monteiro, Rosa Neves Monteiro e Gutyerrez Filho- Manaus - AM  Editora Ágape, 2020.vi, 78 p.; 21 cm.

 

ISBN: 97-885-7828-433-6

 

1.  Literatura. 2. contos brasileiros . Título.


CDD B869.31

             CDU

_______________________________________________________

                              Permitida reprodução desde que mencionada a fonte

 

 

                         

 

Agradecimentos

 

Gutyerrez Oliveira:  Ao meu Senhor Deus honra e Glória por ter dado-me esse sonho real, esse livro-filho, genético e primogênito dos muitos que virão. A minha esposa Rosa Neves, filhos e netos que pela união, me transformaram em esposo e pai de amor. Aos meus irmãos Pintos & Oliveira Monteiro. Aos meus amigos professores, leitores e alunos de todas as escolas das cidades e do interior do Brasil. A memória de minha avó Maria Cândida Ramos de Oliveira (professora das primeiras letras) A minha mãe Layde Ramos de Oliveira.  Ao meu pai Silvino Diniz Pinto, com saudades e lembranças.

                                                           

Rosa Neves :   Meus agradecimentos são para o meu Deus, meu criador e mentor, pois tudo o que tenho, o que sou e o que sei foi Ele que me concedeu.                           

 

Gutyerrez Filho : A toda a minha família, base do meu alicerce, e fonte inicial de minhas inspirações. A Sylvia Aranha e seu olhar carinhoso sobre essa obra e a todos da Associação Dom Jorge Maskell.

A todos os meus amigos que ainda estão por aí (FBF, DELTA-x-a-quinta E.G.S, M.A.G, Perrys, Lupércio, pepetos e pepetas).

E a todos aqueles que não mencionei aqui, mas que acreditaram nesse sonho. E também a todos aqueles que não acreditaram, pois me desafiaram a provar que estavam errados. Ninguém enxerga borboletas em lagartas.    

 

 






                                        Apresentação                                        

 

É difícil escrever a respeito de um livro composto por três autores: pai, mãe e filho. Embora com estilos e inspiração diferentes, os três têm algo em comum: uma grande sensibilidade.

Gutyerrez Pai, fala da floresta, do rio, da sua infância feliz, povoada das fantasias das histórias de Aladim e Ali Babá.  E, ao lado das maravilhas da natureza nos oferece contos sobre o mundo virtual, que ao mesmo tempo limita ou amplia a nossa visão da realidade, conforme a maneira como nos utilizamos das novas técnicas. 

Em Gutyerrez Filho, sentimos uma grande preocupação com o social, com os problemas da juventude e no seu conto “Chico e o Mundo”, uma ânsia de liberdade, uma busca da borboleta azul, “porque tudo o que ele queria era ver o mundo”. 

Rosa Neves nos leva à “Fazenda Segredo” onde passou a infância e onde se apaixonou por um porquinho, e como criança que era, não podia compreender como o animalzinho preferia a lama a uma almofada cheirosa que lhe era oferecida. 

Os três autores são estreantes, promessa de outras obras, que com certeza virão enriquecer nossa literatura.

 

Sylvia Aranha

Em 29 de novembro de 2011

Itacoatiara -AM

(Primeira edição)

 

 











Sumário

 

O Menino Virtual

Gutyerrez Oliveira

 

Sonhos de Lata

Gutyerrez Oliveira

 

Outro Conto do rio

Gutyerrez Oliveira

 

Ônibus de lata

Gutyerrez Oliveira

 

Eu era feliz e não sabia

Gutyerrez Oliveira

 

Uma historia da floresta

Gutyerrez Oliveira

 

Café  Tremido

Gutyerrez  Oliveira

 

Noturno  no  Seringal

Gutyerrez Oliveira

 

Mais um dia

Gutyerrez Filho

 

A Loja de Amigos

Gutyerrez Filho

 

Chico e o Mundo

Gutyerrez Filho

 

Vozes Silenciadas

Gutyerrez Filho

 

Acidente na Avenida

Gutyerrez Filho

 

Porcos na Alma

Rosa Neves

 

Um dia na enchente

Rosa Neves

 

O MENINO VIRTUAL

Gutyerrez Oliveira

 

Ele acorda tarde pela manha. Pois fica acordado a noite toda. Sempre navegando... Navegando... Navegando...

Ele não dorme tão bem a noite, porque sente muito frio e insônia. Logo depois de acordar, liga seu computador e a moça, a empregada da casa, leva o seu  x-burguer de café da manhã. Sua comida predileta. Ele suja o teclado com maionese, pinga refrigerante no mouse. Mas nem percebe. Não tem tempo para esses detalhes corriqueiros.

Enter... Enter... Enter... Um clique e um novo mundo aparece. A vida é mais fácil assim.

 Entra na net, começa a navegar distante e se esquece de voltar para almoçar... Seu corpo já nem sente fome, e emagrece sem que ele perceba, e adoece sem que ele perceba. Sua epiderme é clara demais, nem parece de verdade. Ele nunca sai ao sol. Parece um vampiro. E o seu cabelo é tão desalinhado, tão desajeitado, tão mal cuidado. Ele nunca penteia! No pequeno mundo do seu quarto ele voa pelo infinito do universo e dá uma volta completa na galáxia.  Para ele, suas idéias modernas são inalcançáveis, intransponíveis, já nos ultrapassou anos-luz. Ele tem amigos na Ásia, no Japão, na Europa, Londres e viaja atravessando como um raio para Nova York, visita a Estátua da Liberdade, passeia pelo Havaí num instante e surfa nas ondas da pororoca, na foz da ilha  de Marajó. No momento seguinte vai a Paris, visita a torre Eiffel, vai até o Oceano Pacífico nas ilhas de Apia e Pago-Pago...

Ele está cheio de amigos por todo o mundo. Mas está sempre tão sozinho. Ele tem uma namorada linda que mora do outro lado do mundo, mas nunca a conheceu pessoalmente. Só pela tela do monitor. É uma namorada virtual que se apaixonou por uma foto que nem é dele. Ele nunca sentiu o sabor do beijo de  uma garota  de verdade,  a delícia de um aperto de mão. Mente para si mesmo que sim. Faz tempo que não sente o calor de um abraço, porque não tem mais tempo de andar pelas ruas e praças, sentir a brisa no rosto e ver o pôr do sol.

Ele nem lembra mais do próprio nome de tantos fakes que já criou na net. Não nota as pessoas a sua volta. Afinal o que haveria de interessante nelas?

 A sua mesada permanece intocada na cômoda sobre o quarto. Ele nem ouviu quando seu pai lhe disse sobre isso há três dias.

E quando algo dá errado. Quando o software, o hardware do computador entra em pane... Sua vida também entra! Ele fica desanimado, já não sorri tanto. Sente-se entediado. Quer deletar aquela vida, aquela casa, quer ir para longe, para qualquer outro lugar, onde haja um computador funcionando com internet, que o leve de volta pra sua vida virtual.

“A vida virtual é mais fácil” diz ele “dá pra bloquear aquilo que te incomoda. Se você comete um erro, aperte ctrl + z e tudo estará bem. Em vez de escrever você pode copiar e colar, as idéias que quiser e de onde quiser. Na internet você faz o que quer, você é quem quiser e quantas vezes quiser. Se você tem algum defeito, ajeite no fotoshop. Dois clicks e você está dentro, um Click e você está fora. O que há de mais real no universo?”

No seu mundo não existe tédio somente downloads, downloads e mais downloads... E aí num instante as músicas mais ouvidas, surgem, imagens, wallpapers, novos cenários, novas paisagens, novos filmes do momento.

Click. A sua vida é um novo papel de parede na área de trabalho.

Click. Ele vive mil aventuras em um mundo virtual fantástico de um game.   

Sempre seu pai lhe chama atenção. Um dia lhe disse:

-Acorda menino! Sai desse computador. Vai dar uma volta. Conhecer amigos de verdade! Sai desse mundo virtual. Você não quer aprender nada sobre a vida real?

Ele sorri desinteressado e pergunta:

-Onde é o site que eu baixo algo sobre isso?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SONHOS DE LATA

Gutyerrez Oliveira

 

 

A mulher entrou na sala e viu o seu companheiro de malas prontas, varias bolsas de viagem arrumadas, pronto para partir. Ela estranhou aquilo.

-Vai viajar?

-Não- disse ele frio como sempre.

-O que são essas malas então?

-Eu estou indo embora!

-Como assim indo embora?

Então ele começou:

-O que eu vou lhe dizer agora vai soar como uma desculpa esfarrapada, mas não é nada disso. Eu tenho aqui um cheque de um milhão de dólares oferecido pela Empresa X. Por danos morais ou por qualquer outro tipo de danos devido à experiência que você foi submetida

-Como assim, do que está falando?

-Assine aqui - pediu o marido lhe dando um papel com um monte de letrinhas, um cheque e uma caneta.

A mulher segurou a caneta e tentou ler as letras miúdas e ele continuou:

- Estou indo embora porque não sou como você. Entenda, digo isso em todos os sentidos. E no sentido literal da palavra. Eu não posso sentir como você sente, não posso sorrir como você, ficar alegre, ficar com raiva ou ter medo. Quando eu ajo de tal forma, na verdade tudo não passa de simulações feitas a partir da minha programação.

A mulher já não lia mais nada e prestava atenção estupefata nas palavras do marido.

-Eu não estou entendendo Marcos? Há outra mulher, entre a gente, é isso?

-Não, não é isso

-É um homem então?

-Não. Você não está entendendo!

-Não, não estou! Por favor, me explique! Isso é alguma brincadeira? Porque se for, eu já cai na pegadinha ouviu? Por quê? Por que você está me deixando Marcos?

-Eu não sou humano como você Marta!...

-O quê?

-Sim Marta! Eu sei que é difícil mas, eu sou um protótipo especial  de engenharia robótica  da   Empresa X, acho que você  já deve ter visto nos comerciais. A empresa X trabalha com tecnologia de eletrodomésticos.

-Eu sou um Autômato. Fui criado secretamente, sou uma máquina que simula emoções. Pertenço a uma série de quinhentos protótipos para teste enviados para interagir com a sociedade. Aparentemente temos todas as funções humanas, mas se você prestasse bem atenção perceberia que eu nunca usava o banheiro, ou me alimentava.

-Você esta dizendo que é um robô? Isso é ridículo, Marcos! Não me faça de palhaça, se está arrependido de ter vindo morar comigo não precisa usar essa desculpa idiota para ir embora! Eu nunca te pressionei a nada. Aquela conversa de ontem a noite sobre casamento foi só uma conversa como qualquer outra Marcos! Eu não estou te pressionando a nada! Você está se sentindo pressionado é isso? Não precisamos casar, droga! Eu só toquei no assunto e...

Marcos então começou a emitir vários barulhos mecânicos, alarmes sonoros e intermitentes, girou o pescoço em trezentos e sessenta graus como a mulher possessa do filme  O exorcista.

-Mas o que...

-É o que estou tentando lhe explicar Marta. Você ajudou involuntariamente a Empresa X no teste dos protótipos, durante esses três meses que estive com você. Por isso está sendo indenizada. Quando eu ia para o trabalho, na verdade eu ia até a unidade laboratorial da empresa localizada nessa área aonde era feito manutenções em mim. Assine esse papel, se você  sentiu-se prejudicada sentimentalmente ou moralmente, você será indenizada pela Empresa X, Marta.

Marta chorava, chorava e não queria ser consolada.  Nem mais saber de nada.

- Eu assino! - soluçava ela!- Apenas vá embora daqui sua máquina sem sentimentos! A Empresa X usa as pessoas! Usa o sentimento das pessoas para crescer! Que tipo de empresa é essa?

- Devido à competição em alta escala que está havendo entre a nossa empresa e a Empresa Y, que também teve a mesma idéia de fazer protótipos cibernéticos!  Por isso tivemos que tomar tal atitude! A Empresa Y também fabricou protótipos, Marta. E eles podem estar em qualquer lugar nesse momento fingindo serem pessoas. Não podemos deixar que a empresa Y ganhe os clientes da nossa empresa. Temos que aperfeiçoar os protótipos de relações pessoais o quanto antes. Para isso que fui programado.

- Então todos aqueles nossos sonhos de viajar pra Nova York, Londres, aquilo foi tudo mentira? – dizia ela ainda olhando para o robô esperando que tudo aquilo não passasse de uma pegadinha do Faustão.

- Sinto muito senhorita, mas “latas” não têm sonhos!- disse o robô.

E antes de partir certificou-se de que Marta assinaria o papel e aceitaria o cheque. Partiu para sempre dali, com todas as malas de roupa e com todo o amor e tempo que Marta havia investido.

Depois disso Marta permaneceu sozinha chorando na sala por algum tempo. Alguns minutos depois ela foi até a porta  certificar-se que o marido-robô havia mesmo ido embora, então quando percebeu que estava sozinha limpou as falsas lágrimas e sorriu.

-Há! Há! Há! Que idiota! - gargalhou ela olhando o cheque e o papel assinado de indenização.

-“Latas não tem sonhos!”. Você é que pensa! Eu vou  para Nova York com esse um milhão de dólares - disse ela. – Mas antes preciso ajeitar essa engrenagem aqui!

Dizendo isso ela foi para um quartinho secreto escondido, incrustado na parede, onde havia uma mala com ferramentas especiais  de alta tecnologia. Retirou de lá uma chave especifica  e começou a desapertar um parafuso do seu braço. Em seguida girou o pescoço em trezentos e sessenta graus certificando que suas engrenagens estavam boas ou precisavam de óleos. Depois retirou seu braço de fibra  eletro-mecânico  pingou óleo e uma graxa especial nas engrenagens aonde havia o emblema de marca  de fabricação  da Empresa Y.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

OUTRO CONTO DO RIO

Gutyerrez Oliveira

 

O barulho da máquina no barco que subia o rio invadia o silêncio da floresta naquela manhã. Rasgava passagens entre os ramos verdes, caniços e cipoais, e não mais voltava. Se perdia pelos confins da mata. Uma parte do ruído penetrava entre as árvores do igapó, despertando a Matinta- Pereira, que dormia dentro de um tronco oco e que tinha assobiado a noite inteira assustando os ribeirinhos que moravam naquelas bandas.

O curupira montado no porco queixada, liderava um bando  de caititus que passavam pisoteando e quebrando a mata virgem, destruindo e levando tudo que encontravam  pela frente. No alto das árvores, a jaguatirica e os macacos que ela perseguia pararam distraídos e curiosos por um instante, ouvindo o som estrondoso da manada lá embaixo, que se misturava ao som que vinha do barco. Os animais tentavam manter entre eles, um distanciamento prudente, preparando saltos entre os galhos na precisão de uma fuga.

Outra parte do som ia de encontro às árvores e barrancas de terras caídas na margem do rio e retornavam  para o barco junto com a canção das cigarras-ninfas que naquela hora do dia teciam o verão.

Naquele momento, me sentindo o senhor daquelas paragens, eu, curumim estava deitado de bruços em cima do toldo da embarcação em movimento, olhando o rio com um certo olhar de jovem filosofante. Me deleitava com aquele quadro vivo e conseguia  ver a  minha volta  detalhes que pareciam tão insignificantes para o passante, mas tão nítidos para  mim. Um pássaro voando baixo sobre o rio e de vez enquanto um mergulho no profundo das águas, logo a seguir, lá estava ele com um peixe no bico. Outros pássaros nas árvores, pairando, beijando uma flor; o beija-flor. Uma borboleta colorida voando em zigue-e-zague. Uma flor que não estava ali na viagem passada. Todos aqueles detalhes não me escapavam a visão.  Eu imaginava uma semente germinando, brotando, rasgando o chão lentamente de dentro para fora, buscando a luz para ver aquele dia, fazer parte da vida, participar, receber a brisa suave em suas primeiras folhinhas. Aquela bromélia que na viagem passada começava a brotar, agora já estava adulta, completa, perfeita... Linda.

Meus olhos vasculhavam o horizonte entre o céu e o rio; que se encontravam também por detrás das matas e cabeceiras.

Ao longe, um ponto negro no rio, que crescia ao se aproximar, me chamou atenção. Ficava acompanhando até chegar bem perto e verificar com surpresa que era um imenso loyde brasileiro de turistas, ou um cargueiro que vinha de muito além do mar... Aquilo me deixava assustado, eu perguntava como aquele pedaço de cidade flutuante, edifício com vários andares conseguiu chegar até ali, e passar por nós! Em que outro local, ou país aquele “pedaço de cidade” (eu me referia ao navio com vários andares como sendo um edifício ou um pedaço de cidade)  vai se encaixar como um quebra-cabeça?

Ainda em cima do toldo sentindo aquela brisa fria, o pensamento me transportava para o momento  de alguns dias atrás em que eu caminhava na praça do largo de São Sebastião em frente ao Teatro Amazonas, saltando e caminhando sobre os ladrilhos brancos e pretos em forma de ondas que simbolizam o encontro das águas ou as grandes ondas dos mares do meus sonhos os quais me levavam direto ao monumento central da praça, “Abertura dos Portos”. Onde eu menino, em um piscar de olhos saltava nos convés daqueles barcos de bronze (Europa, Ásia, África e América) e viajava  imediatamente para Argentina, Panamá, Espanha, Portugal, Inglaterra, e de barco em barco para cada país do mundo conforme o meu pensamento.

Sentado no convés daqueles barcos  eu me imaginava um nauta sonhador que conhecia o mundo inteiro, um capitão! Um lobo do mar.

Fazia a primeira viagem para as Américas. Logo a seguir passava de um navio para outro. Imaginava que o outro navio era um navio pirata ou um corsário inglês, hasteava a bandeira negra com os ossos e a cabeça da caveira. Agora eu era um corsário descobridor dos sete mares a serviço do meu rei. Viajava uma nova aventura a procura de um mapa do tesouro perdido pelo terrível pirata barba negra em uma ilha distante.

E num instante a visão da água sendo separada pela proa do barco que formava um bigode constante na proa afastando as águas e removendo obstáculos da passagem me faziam voltar a realidade daquele rio o qual eu estava navegando agora.

 O barco correndo ao lado das margens que iam ficando para trás, recebiam o banzeiro que lavava as pedras e argilas dali.  De repente uma casa, um cercado  na curva do rio, curumins e cunhãtas correndo sobre o barranco de terras caídas para ver o barco subindo. Lá do alto faziam acenos dando adeus. Talvez em cada coraçãozinho ali, batia uma vontade de ir também, naquela viagem... Mas iam ficando para trás... ficavam para trás...

Logo a seguir, a cerca do curral, alguns bois pastando nos olhavam sem ligar, o mais importante para eles era o remoer e fazer o movimento do queixo retirando o supra  sumo do capim. A seguir, a visão do laranjal imenso que se perdia dos olhos na imensidão dos campos. O homem no roçado próximo a margem parava de roçar, retirava o chapéu, limpava o suor da testa com a manga comprida da camisa, parando alguns minutos, mais para descansar e renovar as forças enquanto olhava, do que para acompanhar o barco que subia o rio  cortando o silencio da floresta.

 

 

Ônibus de lata

Gutyerrez Oliveira

 

Na verdade dos nossos sonhos estão tantas historias da nossa vida. Pensamentos,  lembranças e saudades de vivos momentos  vividos na infância, que nos fazem  outra vez pequeninos no tamanho, mas gigantes no viver outra vez! São tantas coisas belas que tinham sido esquecidas, arquivadas, talvez no subconsciente da alma, umas muito reais e outras sonhadas que jamais esqueceremos, como;  correr pela praça, brincar de pega-pega, pular amarelinha, apertar campainhas nos portões e se esconder, atirar bolas de papel nos colegas na sala de aula,  sentir o cheiro das flores  e admirar a confecção de todas as coisas feitas por nosso Deus criador.

 Vou contar lhes uma dessas histórias, foi assim:

Quando era menino, ganhei de presente um pequeno ônibus de lata. Eu o amei desde o primeiro dia, desde o momento que o vi.

Tinha sete anos de idade, o tempo passou, mas parece que foi ontem.  Guardo ainda na lembrança todos os momentos e detalhes daquele encontro.  Lembro até dos passos apressados que eu era forçado a dar (ia chorando)  pois estava sendo levado pela mão de minha mãe que caminhava apressada  para pegar a roupa lavada e passada na casa  de   D. Chiquinha , uma senhora que vivia do oficio de lavar roupas.

 Quando cheguei na porta da sala,  ali estava ele; em cima da mesa de jantar, limpei as lágrimas  dos olhos e me apaixonei!

Comecei a inspecioná-lo.

Como era diferente! Era feito da metade de uma lata de solvente para tintas (tiner) cortada de comprido, nas laterais foram feitas janelas sem vidraças e duas portas; dianteira e traseira. Fiquei olhando para dentro dele pelas janelinhas, notei cadeirinhas bem arrumadas forradas de napas posicionadas umas próximas a janela outras para o corredor do centro do ônibus. A cadeirinha do motorista, alavanca de marchas (câmbio) retrovisores internos e externos, degraus na porta  para a  subida, isso tudo pronto a servir minúsculos passageiros (liliputianos)   da minha imaginação. O chão do ônibus pintado de uma cor alumínio prata, imitando o metal. A cabine fora fixada por sobre uma carroceria com quatro rodas que prendiam em dois eixos, rodas essas  feitas de madeiras com serra “tico-tico” contornadas e lixadas com acabamento  perfeito para as pistas de rolamentos das ruas do meu pensamento. Lembro que era pintado de vermelho fosco com listas pretas nos pára-choques, tinha uma plaquinha com número e tudo para ser identificado com licença pelo departamento de transito e uma inscrição nas laterais que dizia:

 

Viação “Nova Aliança”

 

Paulo, um menino de aproximadamente 14 anos filho único de D. Chiquinha, rapaz de bons modos, gestos calmos, um pouco retraído, encontrou-me analisando sua “obra prima”, contou-me que ele fizera aquele carro  não para brincar, mas para vender e ajudar sua mãe nas compras de casa. Eu quis ficar com aquele ônibus, pedi a minha mãe que comprasse...

Depois de algumas recomendações quanto ao meu boletim escolar, terminou comprando. Paulo ajudou-me a amarrar um fio de barbante no pára-choque frontal e fui puxando  o meu presente carregado de passageiros para a ilusão do meu mundo de criança feliz .

O tempo passou rápido e o que estava previsto para acontecer aconteceu ... Eu cresci, me enamorei de muitas outras coisas pela vida, só não consigo lembrar para onde e como sumiu  meu “ônibus  de lata.”     

Um dia desse entrei numa loja, fui confrontado pelo espanto com essa lembrança outra vez; porque encontrei na prateleira  da vitrine  um outro ônibus com a mesma cor, sendo de plástico e pneus de imitação de borracha ..

Eu o comprei...

Hoje quando escrevo, sinto saudades viajando no tempo das recordações e lembranças maravilhosas da minha infância, quando reconstituo as brincadeiras com os amigos no quintal da casa sombreada de árvores onde nasci, fazíamos ruas, pontes, estacionamentos  e garagens  de areia e pedrinhas  de seixos onde passávamos  com o ônibus e outros  carros fabricados com latas, latas  vazias   com formatos de tratores e amassadeiras  ...

Hoje quando escrevo, vejo outra vez o tempo que passou e o meu ônibus de lata...   O menino que havia em mim, ainda existe.

                                                  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eu era feliz e não sabia!

Gutyerrez Oliveira

 

As recordações continuam batendo bem mais forte. Pulsando no coração, tocando a alma saindo na ponta do lápis para registrar esta saudade. Saudade do eu menino na Manaus da minha infância, quando eu ia e vinha pela rua monsenhor Coutinho, rua que passa por detrás da igreja do largo de São Sebastião, onde de 15 em 15 minutos, ainda hoje o relógio da torre badala a hora certa.

Naquele tempo eu morava nessa rua. Tinha seis anos de idade, estudante inicial empolgado com a mágica das primeiras letras, que ao ajuntá-las,  formavam palavras que nos  permitiam voar e penetrar  no meio das histórias de livros que continham  sonhos  que nos  transportavam para qualquer lugar.

Um dia voei em um tapete voador com Aladim, sua lâmpada e sua namorada, por cima de Bagdá, e vi assustado as torres da cidade em formato de abóboras gigantes, quase colidimos com algumas delas. Outra vez fiquei tremendo de medo quando ao caminhar com Ali- Babá, ouvimos um tropel de cavalos e tivemos que nos esconder por detrás de uma moita enquanto o chefe dos quarenta ladrões gritava “Abre-te Sésamo”  e aquela imensa porta na rocha foi se abrindo sem fazer nenhum barulho , então todos os ladrões entraram, o chefão falou  agora “Fecha te Sésamo”    e a porta  no meio da rocha voltou ao normal como se nada tivesse acontecido, gravamos  as palavras mágicas pronunciadas pelo seu maioral, então  quando os ladrões foram embora, eu e Ali-Babá nos aproximamos da rocha. Ali pronunciou as palavras mágicas e a porta se abriu, vimos então no esconderijo dos ladrões  a maior quantidade de tesouro que os meus olhos já puderam ver.

Vi também outra cena horrível, a vovó da chapeuzinho vermelho ser retirada viva da barriga do lobo mal como se fosse um parto cesariano sem anestesia, operado por um caçador brutamontes.

Outro dia, ao caminhar por um deserto e chegar a uma cidadezinha, vi o Barão de Munchausen tentando desengatar  o seu cavalo que ficou  preso na torre  campanário de uma igreja.

       “E assim eu vivia sonhando com as histórias das mil e  uma noite”.                        

          Estudei no Jardim da infância do grupo escolar Barão do Rio Branco, localizado na Avenida Joaquin Nabuco quase em frente ao Hospital Beneficente Portuguesa, com seus jardins bem cuidados  e  apinhado de  plantas e mangueiras, que onde, ao sair da escola mais cedo, eu e meus colegas de aula colocávamos visgos com leite de jaca para pegar curicas e periquitos barulhentos, ou apanhávamos mangas de bole-bole.

          O jardim da infância do meu grupo escolar, era ladeado de muitas flores, plantas ornamentais,  Avencas, Lírios, Rosas, Dálias, as quais a nossa professora mais bonita falava que não arrancássemos as folhas e flores porque  senão as arvorezinhas choravam e ficavam tristes por ter os seus pedaços arrancados. Imediatamente eu construía na minha fantasiosa mente de menino maluquinho, aquelas plantas de narizes e orelhas arrancadas, com lagrimas nos olhos correndo  atrás de nos, querendo nos pegar para se “vingar”. Durava pouco esse pensamento, porque logo a seguir me distraia com a forma divertida das letrinhas desenhadas pelas nossas professoras. As letrinhas tinham mãos e pés, algumas usavam vestidos com flores, outras vestiam roupas e sapatos de meninos e ficavam coladas nas paredes da sala de aula.

          Tinha uma menininha muito linda, da minha idade, que sentava na mesma mesa que eu, fazíamos  atividades  cobrindo as letras e formando nomes de gente e coisas, estávamos sempre juntos,  fabricávamos   bonecos e carrinhos com cera de modelar, ela gostava de modelar corações. Um dia moldou um azul outro cor de rosa e disse com aquela voz  linda de criança feliz , esse e o seu e o  meu coração!

         Daquele dia em diante eu me apaixonei muito mais! Hoje  lembro dela com muito carinho. Crescemos, fui para outra escola,  ela se perdeu de mim! 

          Alguns anos depois, quase terminando o equivalente ao ensino fundamental, ganhei um radinho de pilha da marca Hitachi. Um dia, de repente começou tocar uma música da época do meu jardim da infância, que dizia assim...

      “Que saudades  da professorinha que me ensinou o  Be-a- Ba  /  onde andará ‘ marianinha’     

Meu primeiro amor onde andará

Eu igual a toda petizada quantas travessuras eu fazia / jogos de botões sobre a calçada

Eu era feliz e não sabia!

Aos domingos missa na matriz /da cidadezinha onde eu nasci

Há meu Deus eu era tão feliz...”  

As recordações chegam de enxurrada como uma cascata contínua, mas não da pra desaguar tudo aqui, agora!

Quando inicio escrevendo essas memórias, estou sentado em um banco da praça na  orla próximo aos mangueirões  de onde  mostra  o  rio Amazonas que não para de passar  em frente a essa cidade linda chamada Itacoatiara. Não só a  cidade canção, mas a cidade que me encheu de inspiração e despertou um escritor escondido há tanto tempo nas bancadas de consertos eletrônicos entre transistores, resistores, capacitores e circuitos integrados , mesas e berços  de testes elétricos  nos galpões  das fábricas do distrito industrial de Manaus.

Graças ao Eterno, hoje posso ver essa paisagem linda e  um barco que passa no rio,  parece que o seu motorista ou o “pratico” esta bastante apaixonado e a música diz no seu radio ou toca CD  “Que hoje a tempestade já passou  e nesse rio de águas calmas eu vou deslizar e consolar meu coração”.

                      

 

                                    

 

                                   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma história da floresta

Gutyerrez Oliveira

 

               

Sebastião já contava seus 18 anos de idade. E desde pequeno nunca saiu muito longe do lugar onde  nasceu. Jamais  havia ido a cidade mais próxima da  sua casa. Em tempo algum fez questão de manter  contato com o mundo lá fora. Um dia alguém falou de rádio para ele, contou que era uma caixa quadrada que falava, tocava e cantava  melodias alegres e apaixonadas, falaram também de um aparelho de televisão, que as pessoas apareciam bem miudinha dentro duma caixa de vidro  quando se ligava um botão, porém ele nunca teve oportunidade de ouvir um, nem  ver o outro. Quando ele ia pescar, no silencio da floresta  ficava matutando no que as pessoas contavam  pra ele.

-Como aquelas pessoas  conseguiam entravam naquelas caixas, será que era um mundo diferente de pessoas  pequeninas?

E ficava cismando. Mas, a fisgada do peixe no anzol e a esticada na linha fazia ele abandonar esses pensamentos. Era pescador desde nenezinho de colo como ele mesmo costumava dizer, ainda no colo de sua mãe ele fisgou “um baita” tucunaré. Vivia do rio é bem verdade.  Morava com seus pais numa cabana ali próximo as margens do rio Caru (afluente do rio Urubu- AM). Conhecia quase tudo do rio e da floresta. Seu pai e sua mãe a muito  tempo se estabeleceram naquele lugar.

Mas,  Sabá do Caru, como lhe chamavam, só vivia embrenhado nas matas caçando e pescando que  nem  um bicho do mato. Não tinha sequer documentos de identificação.  Um dia passou por lá uns agentes da FUNAI. Cadastraram  Sabá do Caru,  como índio brabo do mato.

O  tempo foi passando muito rápido,  a vida de  Sabá  não tinha pressa

–Correr pra que – dizia ele.  Um dia comprou uma canoa  grande para facilitar seu trabalho na pesca e outras coisas da floresta. Com muito custo comprou um motor rabeta e foi tocando a vida. Casou com uma cabocla do rio, muito trabalhadora que o  ajudava  bastante. Quando seus filhos começaram nascer e crescer, mandou fazer para ele um grande batelão (barco  grande de madeira ), Alguém disse para ele.

-Sabá, por que você não pede empréstimo no banco e compra um motor potente para este batelão?

 Para isso, Sabá do Caru, teria que ir a cidade com seus documentos ao banco e fazer o tal empréstimo. Sabá não gostava da cidade, nunca foi índio, mas era matuto, homem do mato, vivia bem assim, a cidade lhe causava arrepios, ouvia  falar coisas assombrosas de lá , mas teve que ir lá cuidar da documentação para comprar o motor para o batelão, naquela época 40 anos se passaram  (nem mais se lembrava) guardava com ele como segredo  sem muita importância,  o cadastramento  da FUNAI. Foi o jeito ir até a cidade. Ficou frente a frente com o rapaz do escritório que verificava o seu documento no computador.  De repente o rapaz  começou olhar  pra ele e pro computador, encarava Sabá do Caru. Que já estava desconfiado e com vontade de perguntar o que estava acontecendo.

O rapaz  do computador olhou para ele e disse

–A máquina,   esta dizendo que o senhor não pode emprestar dinheiro do banco porque o senhor é índio! 

Sabá se assustou de uma forma que não acreditava.  Perguntou:

-Quem contou pra essa maquina que eu era índio? Quem? Quem contou?

Olhou para a máquina assustado porque  achou que o computador era como um deus. Como aquela máquina   descobriu um segredo que ele guardava  há tanto tempo e nunca contara pra ninguém! Até porque nem tinha tanta importância!

-Mas, como isso pode ter acontecido ?

Pensando assim declarou:

-Essa maquina é um deus! - ficou intrigado- Quem contou meu segredo pra ela?

Voltou pro rio Caru sem o empréstimo,  contou o caso  pra todas as pessoas de lá ,declarou

 -Aquela máquina sabe tudo, é como um deus! 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAFÉ TREMIDO

Gutyerrez Oliveira

 

 

 

Pra mim aquilo tudo era folia. O passeio começava quando a vovó Cândida dizia tal dia vamos viajar, sairemos de Manaus no barco de recreio, vamos descer o rio Amazonas e passar em frente a cidade de Itacoatiara. Eita! Maravilha! Eu começava sonhar. Para mim, a viagem começava ali.

Era uma líder essa minha vovó! Cuidava de todos os detalhes, ela queria atar as redes no barco bem cedo pra evitar imprevistos de última hora. Quase sempre ficávamos todos juntos do mesmo lado da embarcação. Tudo pronto, não faltava nada. Hora da saída. Cordas das redes de dormir atadas. Cordas de amarras do barco largadas. Começava então a grande aventura tão esperada. O timoneiro do barco fazia comunicação com a sala das máquinas através da linguagem dos toques de campainha dando a partida. Algumas manobras para trás, outras para frente. Marcha de viagem, lá vamos nós.

O meio do rio bem na frente de Manaus. A cidade é linda vista dali! Era o momento que eu não gostaria de perder nenhum detalhe daquela visão de começo de viagem, a margem esquerda do rio, os prédios antigos, os novos, as casas de tijolos e de barros cozidos, os homens ribeirinhos trabalhando, pescando em frágeis canoas. Curumins tomando banho no rio, pulando das jangadas de toras amarradas para as serrarias. Batelões puxados em terra para manutenção. As últimas casas da cidade iam ficando para trás, a refinaria da Petrobrás com todos aqueles tanques imensos iam ficando também. Aquilo tudo era fascinante. De repente na frente e bem perto dos meus olhos, eu podia tocar com a mão uma das sete maravilhas do mundo(ao meu ver) “O encontro das Águas” lugar cheio de mistérios e encantamentos, lugar de encontro do sobrenatural entre o céu e a terra, as pessoas diziam muitas lendas daquele lugar de sarapantar cabra macho. O barco passava naquele momento por cima das duas águas, que se encontravam, se entrelaçavam, mas não misturavam, sempre foi assim. Lá íamos nós descendo o rio. Os telhados das últimas casas da cidade se esquivavam dos nossos olhos pelo meio das árvores. A próxima parada seria a cidade de Itacoatiara.

No outro dia bem cedo, o momento que eu esperava ansioso nessa viagem, era a hora de tomar o “café tremido”. Então alguém pergunta, o que é café tremido menino? Ora, geralmente a mesa onde são feitas as refeições nos barcos de recreios (em quase todos) ficam posicionadas bem próximas ou por cima da sala das maquinas onde a trepidação do motor é bem mais forte. Então, com a trepidação da máquina, tudo ali tremia. O leite, o café, a bolacha, a mão daquele senhor de idade que não tirava o chapéu de massa da cabeça, o meu apetite tremia, o sorriso das pessoas tremiam, até o olhar da minha avó Cândida sempre atenta a tudo, tremia! A alegria de tomar café tremido pela manhã, viajando em um barco e os meus olhos em contato com a paisagem das margens do rio para mim era o máximo. O café com leite de gado da fazenda na xícara, ficava trepidando, tremendo, formando ondinhas. As colheres e copos sobre a mesa também trepidavam. Na hora de misturar o café com leite, era o grande momento do rio Amazonas que se misturava com o rio negro, eu bebia aquele rio de café saboroso acompanhado com fritos de trigo, pãezinhos, macaxeira cozida, roscas de goma, pés de moleque, mingau de banana com tapioca e outros. Um verdadeiro manjar matutino que encantava o viajante, (eu em particular) que depois de satisfeito de todas aquelas iguarias, ficava imaginando aquele café ecológico tremido, tremendo no meu “bucho”. Depois do café tudo acontecia naquele barco e chamava a minha atenção, eu ouvia as vozes e saberes daqueles viajantes do rio, lembro um senhor com mangas de camisa enroladas que ao falar tirava e colocava o chapéu de palha na cabeça, fazendo graça, contava que na viagem passada, um bode que vinha amarrado perto de uns alqueires de farinha d’água de repente por um descuido qualquer, rasgou com a boca as folhas que encapavam o paneiro e comeu toda a farinha do seu Maíco, que ele levava sempre para vender na capital. Alguém passou e deu um balde com água para o bode que bebeu tudo, bebeu estufou e explodiu, foi pirão de bode com farinha para todo o lado – finalizou ele.

A gargalhada era geral das mulheres e homens que estavam na rede, menos o seu Maíco que perdeu a farinha naquela viagem. Então; a conversa continuava, rolava, falavam mil coisas e mil historias engraçadas ou tristes, eu ficava vendo e ouvindo cada personagem naquele barco. Mais tarde, pela hora do almoço, viria também o guisado de paca, a sopa tremida com jerimum, maxixe, batata e quiabo escorregadio que descia na garganta goela abaixo sem fazer força pra engolir, que maravilha! A trepidação do motor, o caldo quente gostoso com o novo tempero do barulho do motor e da cozinheira do barco, se misturavam com as pinturas naturais das paisagens. Aquela era uma viagem real viajando nos sonhos das margens do rio, no meio da floresta.

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTURNO NO SERINGAL

Gutyerrez Oliveira

 

 

 

Naquele noite tudo estava muito mais escuro do que nas outras noites. Os homens não podiam ver nada do lado de fora do barracão. A chuva parecia não ter fim, destilava por cima das árvores de seringueiras caindo gota a gota nas folhas encharcadas. Dentro do barraco como isolados do mundo, viam o que mostrava a lamparina com o vento remexendo as sombras assombradas da noite na parede. No terreiro, um frio de gelo. Mas, por cima das árvores, no meio de toda aquela escuridão, um olho amortalhado pairava por cima da palhoça vendo e observando os homens frágeis que pitavam suas parroncas de tabaco para espantar os carapanãs. A terra tremia, com zoadas de trovão e no negrume da noite riscavam raios rápidos em ziguezagues de relâmpagos que iluminavam a noite medonha, mostrando como num flash a silhueta das arvores assombradas. O olho se aproximava daquele barraco no meio das trevas do seringal.

O homem na rede, doente de malária, ardendo em febre. A floresta tremia dentro dele... O delírio era maior que a vontade de viver, e a morte se aproximava bem devagarzinho na forma, na figura do rosto de sua mãe. E ele conversava falando com ela no meio de toda aquela escuridão, pedindo que trouxesse alguma poronga para acender e expulsar aquelas trevas, que devagar, bem devagarzinho [...]  estavam entrando, invadindo suas entranhas e tomando conta de sua vida.

– Mãe... mãe ... - ele chamava esperançoso...

A morte lhe sorria bondosa.

– Mãe... mãe ... É você?

E ela apenas sacudia a cabeça sorrindo, confirmando ...

– Mãe, por favor, traz uma lamparina ! Para afastar essa escuridão que esta me penetrando.

E a febre aumentando. E a febre aumentando.

Fazia frio de água da cacimba á boca da noite. Mas ele suava, junto com as nuvens da tempestade. No delírio, aquelas vozes nas sombras da parede contavam tantas histórias! Ele lembrava...

Contavam a história da mãe da seringa, que cansada de ver suas filhas árvores escorrendo seu leite, colocava á noite um pedaço de espírito mau na rede dos seringueiros, e os deixava doente.

Os mais velhos contavam a historia e aguardavam com esperança de que um dia eles voltariam pra casa e seriam como heróis na sua terra natal. Tudo mentira! Tudo mentira! Eles jamais voltariam daquele lugar.

Os deuses da floresta estavam raivosos, eles estavam nos temporais e nos relâmpagos, e sem misericórdia alguma, se escondiam debaixo das folhagens para pular de emboscada na roupa do seringueiro, que indo para sua casa, sem perceber, se escondiam em sua rede de dormir para perturbá-lo á noite com terríveis pesadelos. A casa de palha e a terra tremiam devido aos trovões.

E aquele homem continuava a conversar com sua mãe, ouvindo o pio funesto de uma coruja agourenta, e o gargalhar de um rasga mortalha conversando com sua morte em forma de sua mãe, vestida de mortalha roxa – respondia da cabeceira da sua rede para a coruja que se acalmasse, pois em breve ela teria seu defunto. Não tivesse pressa!

– Mãe... Mãe... Com quem você está conversando?

E a morte apenas lhe sorria bondosa.

O pio daquela coruja parecia uma contagem regressiva para o abandono da vida. Fazia tanto frio, frio de argila molhada no corpo. A febre ardia tanto. A agonia era tanta. O delírio era tanto, que ele preferia que o sono chegasse logo dentro de toda aquelas trevas, naquela hora noturna, soturna da noite!

De repente, no meio da febre, entre a visão da morte e da vida que minguava, escorrendo sonolenta entre os seus olhos, aquele homem soube que a sua rede tão companheira de descanso assim como a rede de todos os outros seus companheiros lhe serviria de caixão, seria o seu derradeiro invólucro para o apartamento apertado de cova da terra fria , por isso gritou num delírio de ultima angustia

–Mãe, não posso me embrulhar... Esse lençol me apavora... E a morte lhe pegou no colo sorridente e bondosa e o balançava consolando!

Cantando baixinho uma canção de ninar!

“Meu filho, não chores senão o dia vai custar a vir. Não vai doer nada , porque morrer não dói, reza três ave-marias, entrega-te, muda a tua roupa pra dormir, veste a pijama de mortalha, pois a coruja já parou de piar, agora você já pode dormir.”

Ele olha então com um olhar já sem brilho pra morte, sua mãezinha bondosa e vê o rosto, a sua mãe sorrindo...

Ele sorri também... Compreensivo... Resignado... Concorda ficar em seus braços...

Ela tão bondosa... Seus olhos nos olhos dele...

Sorri dizendo – Não chores, não vai doer nada!

A chuva vai destilando gota a gota sobre as folhas encharcadas, a terra parou de tremer dentro daquele homem.

 

 

 

 

 

 

Mais um Dia

Gutyerrez Filho

 

 

Jorge acorda e se espreguiça. O Sol já nasceu faz tempo. É domingo e ele acordou tarde. Quase ao meio dia. Para ele, esse é só mais um dia. Seus olhos estão pesados. O sono insiste em ficar.

Enquanto Jorge dormia, um garoto pobre, de dez anos morreu atropelado durante uma brincadeira onde quatro rapazes que dirigiam alcoolizados corriam feito loucos pelas ruas dando freadas bruscas. A mãe do garoto, chora desconsolada perante o corpo da criança no necrotério,e os garotos que dirigiam, filhos de grandes empresários, vão ficar impunes porque segundo o advogado deles: foi apenas um acidente.

Jorge levanta o corpo com lentidão e senta na cama bocejando e espreguiçando-se novamente. Naquele momento o presidente da república começa a sentir leves pontadas no coração. O jornal dá a notícia que no Rio de Janeiro, numa favela, quinze pessoas morreram num tiroteio entre policiais e traficantes. Entre os mortos está uma garotinha de cinco anos com um tiro no peito, vítima de bala perdida.

Jorge olha o relógio na parede, ainda é onze e meia. Ele decide deitar mais um pouco. Afinal chegou em casa as seis da manhã da noitada. Foi uma noite e tanto! E além do mais é domingo. Ele pode acordar tarde se quiser... Não muito longe dali, um homem de quase setenta anos, limpa o árduo suor da testa enquanto trabalha duro limpando e capinando, pra ganhar menos do que a metade da metade do que Jorge ganha. Ao mesmo tempo, num apartamento ali perto, uma garota de quinze anos descobre que pode estar grávida e não sabe quem é o pai. Do outro lado do país assaltantes armados mantêm vinte e nove reféns em um banco.

Jorge fecha os olhos. Um jovem estuda concentradamente pra tentar passar no vestibular pra medicina enquanto seu pai bebe a décima lata de cerveja e assiste futebol. Um cozinheiro sorri feliz, por ter aprendido uma nova receita. Um pai de família senta desconsolado no banco de uma praça, pois acaba de perder o emprego e preciso pagar o estudo dos filhos.

Jorge está prestes a dormir. Começa a imaginar coisas e cenas sem nexo. Pensamentos avulsos vêm em sua mente. Enquanto isso o aquecimento global está causando o derretimento das geleiras nos pólos, e mudanças climáticas continuam ocorrendo no mundo todo. Está chovendo muito na grande São Paulo, e as ruas estão encharcadas, uma alagação está por vir. Na Somália, a mãe desnutrida da á luz um filho morto. No Japão, um suspiro de alívio por uma alarme falso de terremoto.

Jorge finalmente dormiu. O trânsito continua barulhento nas grandes vias, as pessoas xingam estressadas, preocupadas. Operários continuam suando, furando o chão, quebrando pedras. Mas Jorge não sabe disso porque dorme, e as janelas e porta do seu apartamento estão bem fechadas. Pra ele aquele é só mais um dia. E ele está seguro ali, embaixo do seu cobertor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A Loja de Amigos

Gutyerrez Filho

 

Na porta de vidro estava escrito “Entre”.

A garota entrou. Tinha dezesseis anos. Rapidamente aproximou-se dela um vendedor, bem vestido, bem penteado, e com um sorriso no rosto.

-Bom dia.

-Bom dia- disse a garota de volta.

-Posso ajudá-la?

-Sim, eu estou dando uma olhada.

Na verdade a garota tinha olhado a loja já algum tempo e não tinha noção do que se vendia ali, só havia visto o nome da loja:

 

“Loja de Amigos”

 

Talvez houvesse roupas pra vender, talvez bijuterias, ou cosméticos... Não fazia mesmo idéia do que se vendia ali e estava entrando só por curiosidade, mas então,  ao entrar foi surpreendida por tal vendedor.

-Fique a vontade - disse ele

Foi então que ela se espantou ao ver. Dentro da loja haviam várias prateleiras e várias pessoas dentro de vidros gigantes iguais aos de maionese. Eram crianças, homens, mulheres, velhos, pessoas de todos os tipos. A menina sentiu um pavor enorme ao imaginar que iria acabar sendo presa ali junto com os outros.

-E então quer olhar um modelo?-disse o vendedor

-O q-que são eles?...Eles estão vivos? São de verdade?

-Claro que são. Aqui vendemos amigos de todos os tipos.

Então a menina olhou com mais atenção e percebeu que as pessoas estavam se mexendo dentro dos vidros. Não eram apenas manequins. Todos estavam atentos a garota e olhavam curiosos para ela, ansiosos para serem comprados. Com o olhar eles pareciam dizer “ME COMPRE”.

-Você quer uma amiga ou um amigo?

-Eu não sei... - disse a menina- uma amiga, eu acho

-Bom eu posso lhe mostrar uns modelos, quer ver?

-Sim, quero

O vendedor se aproximou de uma vitrine aonde havia uma garota linda num dos vidros, sorridente, olhos claros, cabelos ondulados e vestida na moda.

-Esse modelo é bem requisitado, é um pouco caro, mas é uma amiga que lhe dará algumas vantagens, mas algumas desvantagens também.

-Vantagens?-quis saber a menina

-Sim, a vantagem é que se você andar com ela vai saber de toda a vida dela, e poderá contar toda sua vida a ela. Tudo que você contar a ela, ela não contará a ninguém. Ah sim, outra coisa é que se você andar com ela você vai ter status, já que ela é bem popular.

-E a desvantagem?

-A desvantagem é que ela sempre será mais bonita que você. E você será sempre a sombra dela. Os garotos da sua idade vão preferir ela a você. Por isso você terá inveja dela.

- Hum, sei. E quais são os outros modelos que vocês têm?

-Bom, tem essa aqui também.

O vendedor então mostrou num vidrinho uma garota morena de cabelo encaracolado, bem descolada, e com o olhar companheiro

-Esse modelo é sensacional!-disse o vendedor- É de uma amiga super companheira, super amável e super sorridente. Estará com vocês em todos os momentos. Acontece que ela é muito inteligente e sabe conversar como uma adulta, assim, se vocês estiverem entre amigos, ela será sempre o centro das atenções por causa da sua graciosidade. Então esse modelo não é bom pra quem gosta de ser o centro das atenções.

-E aquele modelo ali?- apontou a menina para um vidro onde estava uma garota com olhar sincero, e com um sorriso de menina sapeca

-Ah sim- disse o vendedor - como eu poderia ter esquecido?Esse modelo chegou recentemente na loja!É um dos melhores

-Quais são as vantagens e as desvantagens?- quis saber a menina que agora já entendia um pouco do assunto

-Essa é uma amiga super sincera, fala o que pensa, dá conselhos, adora a sua companhia, chora com você nos momentos difíceis, sorri com você nos momentos fáceis, adora fazer compras, fazer as unhas, sabe os melhores lugares pra ir, e você sentirá que ela é como uma irmã pra você. A desvantagem é que ela é verdadeira demais e por falar muito o que pensa, isso pode ocasionar algumas brigas, mas nada grave. Ela não vai conseguir ficar muito tempo longe e logo virá pedir desculpas.

-Nossa então acho que vou levar essa! Gostei muito

-Quer que eu embrulhe em papel de presente ou coloque em uma sacola?

-Não pode deixar que eu a levo na mão mesmo, eu já vou usando no caminho.

-Vai pagar em cartão ou em dinheiro?

-Ah sim! Quanto é mesmo?

-Cento e cinqüenta cruzados

-Puxa!Até que não está tão caro! Quanto tempo dura?

-Dura até três meses.

-Só isso?

-Sim. Depois disso ela ficará amuada em um canto. Ficará orgulhosa e quase não falará com você. Depois disso, ela apaga e não tem mais funcionamento.

-Mas três meses é muito pouco tempo de amizade!

-Minha querida- sorriu o vendedor -isso é apenas uma loja. Se você quer amigos de verdade, e que durem pro resto da vida, você não vai encontrar em uma loja. Mas sim lá fora, nos momentos mais difíceis da sua vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Chico e o Mundo

Gutyerrez filho

 

Naquele dia o cachorrinho Chico quis ver o mundo. E saiu pelo portão da frente perseguindo uma borboleta azul, que havia pousado em seu nariz enquanto dormia.

Ele vivia bem com os seus irmãos e sua mãe, Lessie, num quintal espaçoso, cheios de árvores, numa casa cheia de jardins na frente. Ele tinha donos maravilhosos que lhe davam carinho, que lhe carregavam no colo, que lhe alimentavam com leite, e até com biscoitos. Mas naquele dia ele quis ver o mundo, e saiu pelo portão da frente. Ele nunca havia chegado tão longe, ele nunca ia para longe dos irmãos. Chico era diferente. Era agitado. Latia pra cá, pulava pra lá. Puxava briga, puxava o rabo de um aqui, a orelha de outro ali.

Sua mãe sempre apartava as brigas, dando uma lambida, e ele vinha todo manhoso para perto da mãe. Tinha ciúmes dela. Queria ela só para ele. Queria o leite dela só para ele. Queria a tigela de ração só para ele. Queria tudo só para ele. Se alguém tentava fazer carinho no seu irmão mais gordinho ele corria para perto, cutucava uma pedra, pulava de um lado para o outro para chamar atenção para si. Queria todo carinho só para ele. E mesmo assim. E mesmo tendo tudo só para si, algo o incomodava. Algo ainda estava faltando. E ele acordava de noite, e saia de fininho de perto do calor dos irmãos e de sua mãe. Saia da sua casinha e ia dar uma volta pelo jardim, olhava as estrelas, deitado na grama, olhava para um lado e para o outro. Queria mais espaço, mais coisas para descobrir, mais coisas para ver, mais coisas para morder.

Chico escavava a horta dos donos, espalhava o monte de folhas reunido no quintal, mordia as flores, caçava formigas e besouros, mas rapidamente cansava daquilo e enjoava rápido de todas as outras brincadeiras que ele mesmo inventava. Chico adorava aventuras. Adorava o perigo. E fazia todo dia uma arte diferente, mas mesmo assim, tinha algo errado.

Tinha alguma coisa faltando e ele não sabia o que era. O pequeno Chico queria ver o mundo.

Chico odiava tomar banho, fugia pra não ser pego e para não ir pra dentro da bacia d’água. E se o pegavam, ele gania o tempo todo enquanto lhe ensaboavam e lhe escovavam, e fingia sempre que caia sabão no seu olho, para ganhar mais atenção. Logo depois do banho ele corria para a terra, não esperava que lhe enxugassem. Sacudia-se todo, arrastava-se na grama, na terra e ficava imundo de novo. Lá ia ele para o banho de novo! E dessa vez não deixavam que ele fugisse e o enxugavam com uma toalha enquanto ele reclamava. Em seguida secavam o seu pelo com um secador e ele adorava. Os irmãos morriam de medo do secador, mas ele não. Chico era corajoso.

Sempre foi.

Por isso, saiu pelo portão da frente. E logo esqueceu a borboleta e logo ficou encantado com o mundo lá fora. Aquele grandioso e intrigante mundo que o esperava. Ficou rapidamente eufórico balançando o rabo sem parar, latindo bravamente para a rua muito movimentada com carros, ônibus, caminhões e bicicletas. Logo avistou, ali na calçada, perto de uma lata de lixo, um gato vira-lata, rajado, fuçando atrás de comida.

Perseguiu o gato, que se assustou e atravessou a rua rapidamente. Chico não sabia fazer isso. Ele não sabia atravessar a rua. Mas mesmo assim ele correu atrás do gato. A rua era movimentada, vinha um carro e freou bem a tempo de Chico passar correndo, assustado, para o outro lado da rua. Coração acelerado, e apavorado com aquela freada brusca, Chico não sabia mais como voltar. A rua era muito movimentada. As pessoas que passavam ali, na calçada tentaram pegá-lo, mas ele correu latindo. Fugiu! Fugiu daqueles estranhos. A borboleta azul onde estava? O gato rajado onde estava? E Chico onde estará agora?

Passou um dia. Dois dias. Três dias. Passou uma semana. Um mês. Chico não voltou mais para casa. Quem esqueceu o portão da frente aberto? Os donos de Chico ficaram tristes. Seus irmãos ficaram tristes. Sua mãe, Lessie, chorou triste. Onde estará o Chico? Onde estará?

Nesse momento está chovendo muito lá fora.

As noites são muito frias lá fora. Chico está com frio? Chico está protegido da tempestade? Chico terá arranjado algum amigo? Chico está com medo? Não. Não dá para imaginar ele com medo. Ele é muito corajoso. Sempre foi. Ele adorava o perigo.

Ele era tão valente. Mas será que um dia ainda vai voltar para casa? Será que está sozinho? Terá arranjado um novo lar? Por onde anda o Chico?

Chico abandonou o quintal onde morava e agora tudo está tão calmo. Tudo está tão calmo na casinha, na horta. Tudo está tão sem alegria. Os seus irmãozinhos às vezes têm a impressão que de uma hora pra outra ele vai aparecer, abanando o rabo e correndo agitando tudo de novo. Mas talvez isso nunca mais aconteça. Talvez nunca mais ele seja visto de novo. Ele levou consigo toda sua alegria naquele dia, quando saiu pelo portão da frente.

E tudo o que queria era ver o mundo.

 

 

 

 

 

 

Vozes Silenciadas

Gutyerrez Filho

 

Era uma garota linda. Tinha cabelos negros, olhos misteriosos e usava botas da mesma cor da roupa. No rosto maquiagem escuras e um piercing. Estava no cemitério, escrevendo em um diário, foi quando viu um homem, velho, que cavava um túmulo. Era um coveiro. E ela escreveu sobre o coveiro na sua agenda e sobre o que achava dele. Parecia um homem pobre, desnutrido, fracassado - cavando covas pra ganhar dinheiro.Talvez nunca tivesse lido sequer um livro. Talvez nem soubesse ler direito. De repente o coveiro percebeu a garota gótica ali. E disse:

-Porquê você está aqui garota, no Lar dos Mortos?

-Vim pra ficar sozinha, pra pensar.

-Você não tem medo?

-De quê?

-Dos mortos.

Ana riu. O coveiro devia estar querendo lhe assustar

-Eu tenho mais medo dos vivos do que dos mortos - respondeu ela.

-Então cuidado.

-Com o quê?

-Pra você não se tornar como eles um dia.

-Todos nós vamos morrer um dia e nos tornar como eles- disse Ana

O coveiro parou então de cavar e se aproximou dizendo

-Aqui estão enterradas pessoas. Muitas pessoas. Vítimas do tempo, de doenças, de acidentes, incidentes. Aqui não estão enterrados só os corpos dessas pessoas, mas também seus pensamentos e idéias nunca reveladas. Sentimentos reprimidos. Amores secretos que jamais sairão do túmulo, mas que poderiam ter sido maravilhosos. Pedidos de perdão nunca feitos. Coisas que deveriam ter sido resolvidas e não foram. Sonhos que poderiam mudar o mundo. Sabedorias e conselhos que poderiam mudar o rumo de uma vida e até quem sabe salvar uma vida. Todas essas coisas agora estão aqui, enterradas e jamais sairão desse lugar. Tudo isso. Todas essas coisas estão aqui, para sempre, aprisionadas na terra adormecida dos corpos mortos. Essas coisas estarão para sempre gritando um “sinto muito” que nunca veio para uma pessoa querida ou “eu sempre te amei” para uma pessoa amada. Arrependimento... Essa terra está cheia de arrependimentos...

O coveiro suspirou fundo e perguntou

-Qual o seu nome?

-Ana

-Ana. Não deixe que sua vida se torne algo cheio de arrependimentos. Não deixe sentimentos escondidos até o túmulo. Não esconda amor no coração. Viva a vida. Ame. Grite. Não venha se tornar pó um dia, sem dizer o que sente para que seus sonhos se tornem apenas um petróleo onírico aqui desse lugar, onde todas as vozes silenciadas gritam em silêncio.

Depois disso o coveiro se foi. E Ana Também.

Aquelas palavras do coveiro ficaram. Anos depois ela passou ali, e já era uma mulher. Ela passou de carro e parou na frente do cemitério, abaixou o vidro e procurou por aquele coveiro com os olhos, mas não o encontrou. Resolveu entrar e procurar por ele. Foi até o lugar que estava naquele dia que conversou com o coveiro. Mas não o encontrou também.  Perguntou para um vigia sobre o tal coveiro contou como ele era e que fazia tempo que tinha lhe visto. O vigia lhe informou que era novo ali e que não conhecia ninguém assim por ali.  Ana então foi embora, e na saída do cemitério, entre um tijolo do muro e o cimento da calçada, encontrou uma flor bonita. Então sorriu. E lembrou do que havia aprendido duas coisas com o tal coveiro que nunca deixaria sua vida ser um arrependimento e que coisas bonitas e palavras sábias  podem vir dos lugares mais inesperados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Acidente na Avenida

Gutyerrez Filho

 

 

Uma multidão aglomerada atrapalhava o trânsito na avenida principal.

Pessoas curiosas se aproximavam, velhas, senhoras, estudantes fardados, camelôs, vendedores ambulantes de bombons. Panelinhas aqui e ali conversavam sobre o que havia acontecido.

 Percebi logo de cara. Havia acontecido um acidente. Me aproximei para ver quem havia sido a vitima.

-Eu acho que ele ainda está vivo- comentou uma senhora com um homem

-Ele desmaiou na hora - dizia uma jovem para o seu namorado que a abraçava como que tentando acalmá-la do susto de ter visto o acidente.

Ouvi outros comentários como:

-Ela está morta?

-Acho que sim, ela está cheia de sangue

Ele ...e ela? Quantas pessoas eram afinal?-pensei eu

Fui me aproximando, penetrando a multidão. Não dava pra ver nada. Tinha muita gente na minha frente. Alguém se esbarrou em mim, saindo do aglomerado dando espaço pra que eu entrasse nele. Tudo o que eu podia ver era uma picape tombada no meio da avenida. Ouvi um barulho de sirene. Olhei pra trás e vi que o carro da ambulância parava ali perto. Penetrei a multidão, me espremi para entrar naquele aglomerado de gente curiosa. Empurrei uma mulher para de uma vez por todas ver quem havia sido a vítima. Fiquei surpreso e chocado! Era uma garota da minha idade! Fiquei mais surpreso ainda ao perceber que eu conhecia o rosto.  Será que era quem eu estava pensando? Mas que droga! Eu não podia acreditar naquilo.

Na quarta série eu havia estudado com uma garota chamada Carolina, não lembro o sobrenome. Albuquerque, ou Oliveira, tanto faz. De início não nos falávamos direito. Só trocávamos algumas poucas palavras que eram de “oi” a “me empresta um lápis”. Eu tinha um amigo, parceirada que também estudou comigo da quinta série em diante. O nome dele era Carlos. E ele vivia dizendo

-A Carolina esta afim de você.

Eu não acreditava, mas ele dizia que toda vez que ela me via ela sorria, e que ficava me olhando quando eu passava. Comecei a achar então que aquilo podia ser verdade, pois comecei a prestar atenção no jeito dela. Acontece que eu já era afim de uma garota, uma da minha rua que sempre jogava vôlei com a gente. Por isso não dei muita bola pra essa história. Aquele ano terminou e fomos todos pra sexta série. Eu, Carlos e Carolina. O Carlos continuou dizendo que aquela garota se amarrava em mim. Dizia:

-Pô, ela é bonitinha, se eu fosse você eu ficava com ela

Eu inventava uma desculpa e mudava de assunto. Como eu disse, tinha a garota do vôlei.

Naquele início de ano  recebi um bilhete, escrito numa folha de caderno assinado como “admiradora secreta”. Estava mais do que na cara que era coisa da Carolina. O bilhete dizia que eu era o cara certo pra ela, tudo que ela sempre havia sonhado e que ela iria lutar por mim até o final e outras coisas desse tipo. Uma verdadeira declaração de amor. Fiquei lisonjeado com a carta. Até pensei em ficar de uma vez por todas com ela. Mas pelo jeito a parada ia ser dura. Ela devia estar apaixonada e ia se envolver demais. Pensei bem antes de tomar qualquer decisão. Resolvi também que não mostraria a carta ao Carlos. Queria resolver aquela história sozinho. Continuei a Recber bilhetinhos. Mais uns três ou quatro. E a Carolina quando encontrava comigo sorria e tentava se aproximar e puxar conversa. E isso resultou em uma leve amizade. Acabamos nos aproximando. Agora conversávamos mais abertamente, eu fazia ela rir, ela me fazia rir. O Carlos dizia:

-É isso aí meu irmão. Não, dispensa não!

E então houve mais um bilhete, o último. Dessa vez um bilhete diferente. Em uma folha colorida, perfumada e de cor rosa. Ali Carolina escreveu um poema e revelou sua identidade dizendo que me amava e que não podia viver sem mim. Eu não podia acreditar naquilo. Aquela história estava mais séria do que eu pensava. Toda aquela declaração eu só podia corresponder de um jeito e fiz o que Carlos já havia me dito. Fiquei com Carolina atrás da quadra da escola. E aí então namoramos o resto daquele ano. A Carolina vivia me trazendo bombons, bilhetinhos, cartõezinhos. Tudo ia bem entre a gente. Foi então que aconteceu. Na sétima série a garota do vôlei me deu bola e aí ficou claro o que ia acontecer. Traí a Carolina com ela. E rapidamente todo mundo ficou sabendo. Inclusive ela. Ela não me disse uma palavra, apenas se afastou. Não foi tomar satisfações, nem disse nada. Apenas se afastou. Desde então não nos falamos mais. Evitávamos nos encontrar ou cruzar o olhar e foi assim durante toda a sétima série. Na oitava série logo no início do ano eu percebi a mudança da Carolina. Ela estava com um novo visual. Algo meio rebelde. Como se estivesse revoltada. Havia pintado o cabelo, colocado piercing e feito uma tatuagem. Agora ela respondia aos professores, xingava, gritava com os outros. Aquela nova Carolina pouco lembrava a de antigamente que eu havia conhecido e namorado. Aquela menina tímida e sorridente que evitava me olhar agora ela já me encarava. E quando fazia isso era sempre com um olhar de raiva que parecia dizer:

“A culpa é toda sua!”

Então ela começou a namorar com uns caras bem mais velhos que ela. Um dia apareceu bêbada na escola.

O Carlos começou a dizer:

-Viu o que você fez? Feriu o coração da moça, cara.

Eu dizia que eu não tinha nada a ver com isso. Final eu não podia acreditar que a garota havia mudado totalmente por causa de um coração partido

Mas, eu não era o tipo de cara que entendia muito de coisas do coração. A oitava série continuou e Carolina continuou aprontando. Volta e meia toda a sala comentava

-Já sabe da última. A Carolina saiu de casa.

-Já sabe da última a Carolina está com os olhos roxos porque apanhou do namorado.

-Já sabe da última... A Carolina desistiu da escola

E assim ela sumiu. Não a vi nunca mais. Passou-se mais um ano. Dois anos. De vez em quando eu havia por aí. Seu olhar já não era mais de raiva, agora era de desprezo.

 Aí segui minha vida, Carlos também seguiu a dele, se mudou pra outra cidade. A menina do Vôlei que aliás se chamava Gabrielle, se casou cedo com um cara que veio do sul, filho de um empresário. Tive várias namoradas depois disso. E essa história ficou no baú.

E agora ao passar pela avenida vejo de repente esse rosto que eu um dia conheci. Carolina, envolta em uma poça de sangue. Uma coisa terrível de se ver. A última notícia que eu havia ouvido sobre ela era que ela estava namorando com um cara que tinha uma picape e que só andava em alta velocidade. Já havia batido várias vezes, mas nada desse tipo. Agora vejo o casal, 

-Provavelmente a garota ultrapassou o vidro do carro na hora que a picape bateu a toda velocidade no poste. O rapaz e a moça estavam alcoolizados- ouvi alguém comentar

E aquilo me deixou pensativo. E se eu não tivesse ficado com a garota do vôlei e não houvesse magoado a Carolina. Ela teria um destino diferente? Ela teria andado com más companhias tentando chamar a minha atenção?  Ela teria ficado revoltada? Será que foi tudo culpa minha? Será que foi tudo uma reação em cadeia, uma bola de neve? Não sei dizer. E nem sei dizer também se ela estava viva, ali, caída no meio da avenida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Porcos na Alma

Rosa Neves

 

O sol ia se pondo. Eu olhava aqueles raios por entre as árvores. Era belo e misterioso o pôr do sol. Nos meus sete anos de longa vida, (me sentia uma mocinha) eu não conseguia compreender. Eu pensava “Por que o sol vai embora?”.

Nesse tempo de férias estávamos na fazenda de meu Pai. Casa Grande avarandada, com assoalhos bem alto preparados  por causa da grande cheia do rio Amazonas, mas era tempo de verão e tudo estava seco.  Na fachada da casa tinha uma placa com letras, eu ainda não sabia ler,  me disseram que ali estava escrito “Fazenda Segredo”. Era na beira do rio Amazonas no meio da floresta. Tinha de tudo lá: galinha, pato, pinto, cabra, cabrito, boi, vaca, cavalo e porco.

Naquela hora do pôr do sol, próximo onde eu estava sentada não havia silêncio. É que bem próximo a mim  uma enorme porca gorda cheia de bacorinhos (porquinhos)estava  deitada e eles tentando mamar  gritavam fazendo enorme barulho. Não sei ao certo quantos eram, sei que eram muitos, havia dois diferentes, eles estavam enfeitados com laços no pescoço. Eu não estava ali por acaso, esperava o meu Cupuaçu mamar, assim era o nome do meu porquinho. Era marrom, roliço, igual a um cupuaçu. Ganhei esse porquinho de meu pai, o outro era de minha irmã.

Era tão lindo, mas, me dava muito trabalho e preocupação, eu ficava seguindo e cuidando dele durante o dia todo. Desde que o ganhei, pegava ele no colo como se fosse um bebe, parecia que eu não agradava muito, porque ele gritava demais, sempre agoniado não ficava quieto, esperneava querendo ir para o chão. Pegava ele no meu colo acarinhando, mas ele sempre ficava roncando, quando não gritando.

No dia em que eu e minha irmã  ganhamos os nossos porquinhos,  papai nos chamou e disse:

-Filhas escolham os seus bacorinhos!

Olhei e o meu coração bateu forte quando deparei com o Cupuaçu, todo marronzinho, lindo, me apaixonei por ele. Peguei-o no colo e fiz uma promessa:

-Eu vou cuidar de você.

Eu queria dar um banho nele. Minha mãe me ajudou.   Deu banho, perfumou, colocou laçinho de fita bem colorida e bonita com o nome que eu tinha escolhido e batizado. Cupuaçu na verdade era uma porquinha.

Eu então doei minha almofadinha para Cupuaçu dormir confortável. Cupuaçu não queria saber de almofada, agoniada grunhia, guinchava, roncava e esperneava.

- Deixe ele no chão um pouco para mamar, disse minha mãe aperreada com tanto grito.

Soltei Cupuaçu que saiu em disparada atrás da porca; sim, daquela porca , porque a mãe  de cupuaçu agora  era eu. Corri atrás, a porcona tinha resolvido ir para uma poça de lama se lambuzar e Cupuaçu para minha tristeza se atirou com toda alegria   na lama junto com a mãe e os irmãos.

Voltei chorando porque minha porquinha estava toda suja. Inconsolável, chorava muito e soluçava, minha mãe parecia sorrir do meu sofrimento e eu me desesperava em ver a minha amada Cupuaçu na lama.

-Não chore e deixe que ela possa descansar um pouco, depois nós daremos outro banho nela.

Fiquei sem entender, porque cupuaçu estava cansada?

Ela estava no meu colo o tempo todo! Não a deixei andar a manhã inteira!

Então novamente minha mãe e eu pegamos Cupuaçu e demos outro banho nela, laçinho colorido de fita  outra vez em seu pescoço, fiz questão de passar quase toda a minha lavanda em Cupuaçu, que gritava quanto mais eu passava talco e lavanda.

Então nesse por do sol eu esperava Cupuaçu mamar para pegá-la no colo novamente. Era bonito o por do sol, mas eu estava preocupada, a noite estava chegando e Cupuaçu ia ficar lá fora da casa no escuro. Então me perguntava, porque o sol vai embora?  Naquele momento aquele era um problema sério que eu não podia resolver. Era a minha preocupação. O problema era do meu tamanho. Cogitei em fazer uma tentativa de levar Cupuaçu para dormir comigo em minha rede. No momento refleti: que se mamãe descobrisse, era “peia” na certa. Então fui falar com ela. Minha mãe respondeu:

-Nem pense mocinha! Ela vai ficar bem, está com a mãe dela e amanhã você brinca outra vez com ela.

Não foi uma explicação muito convincente. Fiquei magoada com mamãe. Mas argumentei, - mãeee, eu não coloco ela na rede não, ela vai dormir na almofada em baixo da minha rede.

 Mamãe disse: - Quando mamãe diz não é não, certo?

- Certo! – Respondi- Custei dormir naquela noite. Ouvi o piado da coruja e pensei; - será que esse bicho vai pegar minha porquinha? Meu coração ficou apertado, Cupuaçu devia estar com medo do escuro e dos barulhos dos bichos do mato. Meus olhinhos se encheram de lágrimas e dormi abraçada com a almofada de Cupuaçu.

De manhã bem cedo, nem fui pegar o meu leite na caneca lá no curral. Fui atrás de Cupuaçu, que estava toda suja novamente, foi outra maratona e os dias foram se passando da mesma maneira, nem eu, nem Cupuaçu estávamos felizes. Cupuaçu já não gritava tanto no meu colo, mas continuava a correr para a lama assim que tinha uma chance, eu queria dar queijo pra ela, Ela queria era babujo, restos de frutas e comidas. Tentei dar um pedaço de carne assada com feijão, carne de paca, Cupuaçu não quis. Que dificuldade era a minha! Realmente era um problema sério para mim, a minha querida Cupuaçu não queria ficar limpinha e nem deitar na almofadinha cheirosa.

Isso me deixava uma menina pensativa e até um pouco tristonha. Eu tinha tantos planos para Cupuaçu. Queria fazer dela uma porca limpinha e cheirosa. Mas Cupuaçu não queria saber de meus sonhos, o seu prazer estava em deitar na lama, fuçar o chão e ficar emporcalhada. Eu estava pensativa. Cupuaçu não queria saber daquele mundo de limpeza e perfumes. Meu pai me observou,  me viu assim, foi até mim e perguntou:

-E então minha filha, onde está a sua porquinha?

-Ela fugiu pra lama papai!  Respondi tristonha. - Por que pai? Por que ela prefere a lama em vez da almofada cheirosa?  Hein pai?

-Porque a lama já está na alma dela minha filha - disse meu pai.

Então eu entendi...

Passei a observar a alegria de Cupuaçu de longe, balançando o rabinho sujo de satisfação. Eu olhava o pôr do sol e me perguntava “Por que o sol vai embora?”.

 

 

 

                   


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um dia na enchente

Rosa neves

 

Manhã chuvosa, um pouco fria. Ela se espreguiçou na rede e olhou para o lado, em outra rede bem perto, estava a irmã, já acordada, com aquele sorrisinho conhecido. Sorriram uma para a outra, e automaticamente pularam da rede quase ao mesmo tempo, correndo, foram para a janela olhar os pingos de água caindo no rio.

Era tempo de enchente. A água passava por debaixo do assoalho da casa, dando a impressão de  estar sempre viajando em um barco. A casa era feita de madeira, o assoalho também, com pernas altas, prevenindo as grandes enchentes. As duas irmãs queriam ir para a varanda da casa onde a visão era melhor, lá dava para ver os peixinhos nadando sob a água, tinha uns bem pequenos fugindo dos grandões que queriam devorá-los. Assim como na vida onde também há muitos peixões querendo devorar os peixes pequenos, que vivem lutando para sobreviver neste tempo de grandes “enchentes”.

A varanda era espaço proibido, para elas, pelo perigo de cair na água e se afogar. Seus pais tinham grande preocupação com isso, pois volta e meia sabiam da morte de alguma criança que caindo no rio se afogava. Uma tristeza só.

Os pingos da chuva que incidiam no rio era uma atração à parte para Lalála; assim lhe chamava sua irmã Balila. Eram apelidos carinhosos com que eram chamadas.

Lalála na sua meninice olhava em torno e refletia:

  -Tanta água, para quê...?

 A água caia do céu, e ao redor era água por toda parte, havia árvores que já estavam submersas, e a correnteza era forte, trazendo e levando coisas sem parar, por debaixo da casa e nas laterais. Ficavam ali apreciando, aquela beleza. Lá vinha um pedaço de pau, descendo rio abaixo e a disputa começava:

- Esse barco é meu!

- Não, é meu!

- Eu vi primeiro!

-Não quero mesmo, esse é feio!- E a peleja continuava.

Naquele dia marcante, a chuva foi afinando, afinando até passar por completo. Haviam dias que chovia o dia todo. A mãe falou:

- É hora de escovar os dentes mocinhas!

Rapidamente pegaram as escovas e foram para a escada, onde mais da metade  já estava debaixo da água. Sentaram no degrau e Balila ficou brincando com as mãos dentro da água, de repente um grito se ouviu, então ela levantou a mãozinha gritando, e atracada com os dentes ao seu dedinho indicador, estava a malvada piranha. O pai-herói correu em seu socorro. Foi uma mordida feia. A mãe fez o curativo. E foi aquela  correria, depois que passou o susto, o pai falou:

- Eu vou buscar o leite!

Lalála correu para pegar a caneca de alumínio com alça. Ouviu a  irmã soluçando dizer:

- Eu vou também!- Lalála então muito feliz pegou  a caneca da irmã. Era uma rotina  irem com o pai até a maromba tirar o leite pela manhã. Foram para a canoa, Lalála com lágrimas nos olhos observava Balila que ainda soluçava no resto de choro,  queria poder tirar da irmã aquela dor em seu dedinho. E as recomendações da mãe vieram:

-Se assentem bem no meio da canoa, cuidado! Não ponham as mãos na água, não se sujem!

O pai começou a remar e lá foram rumo à maromba.

Maromba é um curral de boi flutuante, com  toras grossas de madeira amarradas umas às outras, como jangadas enormes, com tábuas por cima formando uma grande plataforma, ali  ficam os bois, cavalos, carneiros, na época de enchentes, até o rio secar outra vez. E nos tempos de seca a maromba virava um lugar perfeito para brincar e para lazer da família.

A maromba da casa de Lalála, estava presa embaixo de árvores, onde o gado podia se proteger do sol forte e desfrutar das sombras.

Antes de chegar à maromba, a passagem pelas  ingazeira e árvores mari-mari,  era certa! o pai colhia as frutas.

Ao chegar no curral, enquanto o pai tirava o leite, subiram na cerca e ficaram apreciando a visão dos bezerros querendo mamar, andavam de um lado para o outro, uma vaca mugindo, os cavalos relinchando.

 Hora da mamada! O pai encheu as canecas, com leite fresquinho e elas tomaram ali mesmo.

Balila olhou para Lalála sorriu e disse:

- Olha o teu bigode branco! Ela já havia esquecido o susto da piranha.

- Ta doendo? – Perguntou Lalála.

 –Ta. Respondeu a irmã.

- Papai do céu vai curar, ta bom?- Se abraçaram ali. Uma cuidando da outra. Como selando um pacto de amor. Aquele dia estava sendo marcado na vida delas. As irmãs maiores estavam na cidade estudando. Só voltavam nas férias.

De volta para casa, o pai passou onde havia colocado uma malhadeira e pegou diversos peixes.

Lalála estava preocupada. E agora? A irmã não podia mais fazer nada. Tinha que ficar quietinha com aquele dodói, a mão levantada, para não bater, se apressava o passo, doía.Tinha que andar devagarzinho. Não podiam mais balançar na rede tão alto, como gostavam porque também doía o dedinho. E agora? Correr pela casa também não podia. O dedinho levantado para cima era a novidade do momento.

O que fazer então? Duas crianças cheias de energias presas em uma casa sobre as águas do grande rio Amazonas. Brincar de boneca não podiam, Balila estava impossibilitada de pegar qualquer coisa, cheia de manha. A mãe com  cuidado e tanta dó da filhinha mordida pela perigosa piranha, fazia mingaus e chás  para Balila.

 As crianças da vizinhança chegavam de  canoas, eram meninos e meninas  a partir de três anos, vinham pegar leite, nas panelas. Às vezes traziam alguma coisa para trocar.

As duas entediadas porque não tinha espaço para andar nem se movimentar muito. Resolveram conversar: E foi o dia de repetir a história da piranha por diversas vezes, e cada vez que elas recomeçavam mais detalhes iam acrescentando.

Lalála disse :

-Tu viu o olhão dela arregalado para mim,  dizendo – Eu vou te pegar!

A irmã respondeu:

 –Vi. E ela disse para mim:

-Depois que eu te devorar eu vou comer a Lalála e todo mundo da casa, não vou deixar ninguém.

A biografia já estava tão prolongada que a piranha já tinha virado um verdadeiro tubarão. A história da pequena piranha já havia se transformado em uma fábula de terror. Se o pai herói, não fosse mais rápido, e tão forte, ninguém mais existiria naquele “lar-ilha”, e se mãe não fosse tão eficiente no curativo a água estaria toda vermelha de tanto sangue que saía do dodói. O pior! É que se o pai e a mãe não existissem elas estavam perdidas. Bateu um medo no peito, correram rumo a cozinha para perto dos pais. O pai tecia uma tarrafa, a mãe já estava com a mesa pronta para o almoço. Sobre a mesa, bandas de tambaqui assadas cheirando e em uma panela fumaçando uma caldeirada de tucunaré. As pessoas que moravam na casa foram chegando para o almoço. O tio das meninas havia pescado um enorme pirarucu que ia vender no comercial flutuante próximo dali.

No decorrer do almoço o tio foi narrar a pescaria; contou que viu um jacaré de uns cinco metros que quase pegava ele. E as outras pessoas argumentavam;

- Porque não deu um tiro no bicho?

-Se eu matar um jacaré me prendem! Respondeu.

- Mas se ele comer sua perna? Vão prender o jacaré? -Argumentou outra pessoa.

Fazendo mesuras e sem respostas, mudaram de assunto. Depois do almoço foram fazer a sesta.   

E o dia foi decorrendo. O pai já havia voltado dos seus trabalhos diários.

 A mãe então dirigiu a oração em família como sempre, dizendo:

 -Família que ora unida, permanece unida. Depois desse momento o pai como costumeiramente pegou a viola, já com o sol se pondo e cantou uma canção de lamento:

 

Se o nordestino fala da seca

Da aspereza do seu chão

Eu falo cá do meu norte

E da sua inundação.

Ah! Eu deixei Maria Rosa

Muitos pés de plantação,

E arribei pra vila da barra

No primeiro regatão

Eu sou gente, que vivo no norte

Lutando com a vida em busca da sorte

Eu sou gente que vivo no norte

Buscando a vida e fugindo da morte

 

E assim terminou um dia na enchente...